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Meditação – Maria Firmina dos Reis

(À minha querida irmã – Amália Augusta dos Reis)     Vejamos pois esta deserta praia, Que a meiga lua a pratear começa, Com seu silêncio se harmoniza esta alma, Que verga ao peso de uma sorte avessa. Oh! meditemos na soidão da terra, Nas vastas ribas deste imenso mar; Ao som do vento, que sussurra triste, Por entre os leques do gentil …

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A rosa – Carolina Maria de Jesus

Eu sou a flor mais formosaDisse a rosaVaidosa!Sou a musa do poeta. Por todos su contempladaE adorada. A rainha predileta.Minhas pétalas aveludadasSão perfumadasE acariciadas. Que aroma rescendente:Para que me serve esta essência,Se a existênciaNão me é concernente… Quando surgem as rajadasSou desfolhadaEspalhadaMinha vida é um segundo.Transitivo é meu viverDe ser…A flor rainha do mundo.– Carolina …

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Sonhei – Carolina Maria de Jesus

Sonhei que estava mortaVi um corpo no caixãoEm vez de flores eram IivrosQue estavam nas minhas mãosSonhei que estava estendidaNo cimo de uma mesaVi o meu corpo sem vidaEntre quatro velas acesas Ao lado o padre rezavaComoveu-me a sua oraçãoAo bom Deus ele imploravaPara dar-me a salvaçãoSuplicava ao Pai EternoPara amenizar o meu sofrimentoNão me …

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Redemoinhos – Elizandra Souza

Quem pode prender essa ventania que mora em mim? Essa fertilidade de espalhar boas sementes De unir elementos contraditórios dentro de si Tempo que se fecha sem chover, poeira do meu indizível. Fogo que alastra indomável pelo caminho Águas que recuam e voltam com intensidade Nesta instabilidade de nascer tempestade e dissipar-se fogo Fecha meu …

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Poema essencialista – Adalgisa Nery

Sinto o conteúdo da existência. Procuro ultrapassá-lo com enorme exaltação poética, Rompo as grades do mundo com o espetáculo das formas, Dos sons e das cores. Tudo me afoga em nostalgia de outras eras, De outras vidas que cristalizaram As tendências da minha infância. A utilização das coisas plásticas Altera o equilíbrio da visão. Distribuo …

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Poema simples – Adalgisa Nery

Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite, Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra, Deixa-me recolher a estrela úmida Antes que sua luz desapareça na madrugada, Deixa-me recolher a tristeza da alma Antes que a lágrima banhe a pálpebra Do órfão abandonado e faminto, Deixa-me recolher a ternura …

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Vivência – Adalgisa Nery

Começamos a viver Quando saímos do sono da existência, Quando as distâncias se alongam nas partículas do corpo. Começamos a viver Quando confusos e sem consolo Não sentimos os traços do irmão perdido. Quando antes da força Surge a sombra do insignificante. Quando o sono é transformado em sonhos superados, Quando o existir não é …

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Eterno tédio – Adalgisa Nery

Muitas vezes esgotando o meu destino Com o olhar em pranto E o coração pungente como um dobrar de sino, Ouço ruídos seculares que unem como um canto, Crescendo de intensidade, Mergulhando os meus sentidos Na maior profundidade! Muitas vezes, considerando a vida Com desumana indiferença, Por toda a esperança perdida, Pelo abrir de um …

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Eu em ti – Adalgisa Nery

Desejaria estar contigo quando eras no pensamento de Deus, Quando tua mãe te concebeu e te alimentou com sua vida, Desejaria estar contigo na primeira vez que distinguiste as formas, [as cores e os sons, Na tua primeira lágrima eu quisera estar contigo e assim na tua [primeira alegria, Desejaria estar contigo na tua infância …

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Mulher – Adalgisa Nery

Na face, a geografia da angústia, Dos pânicos e das medrosas alegrias. Cada ruga é um presságio. E auréola da aflição constante O esplendor dos cabelos brancos. Uma só raiz para frutos diversos, Uma só vida para destinos tão complexos, Um só pranto para dores tão diversas. O útero que gera o herói, o sábio, …

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Paisagem – Adalgisa Nery

Restam nos meus olhos Séculos de planícies áridas E o vento ríspido que trouxe as lamentações Das sombras agitadas Sobre os pântanos desconhecidos Distantes estão os caminhos Onde eu encontraria a suprema fraqueza Para vergar os meus joelhos E deitar no pó a minha boca moribunda Invisíveis estão as estrelas Que me levariam a contemplar …

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Olhando no espelho – Abdias do Nascimento

(Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto)Ao espelho te vejo negrinhote reconheço garoto negrovivemos a mesma infânciaa melancolia partilhada do teu profundo olharera a senha e a contra-senhaidentificando nosso destinoconfraria dos humilhadosa povoar de terna lembrançaesta minha evocação de FrancaÉramos um só olharnos papagaios empinadosao sopro fresco do entardecerNegrinho garota negravivemos a mesma infâncianos …

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Autobiografia – Abdias do Nascimento

EITO que ressoa no meu sanguesangue do meu bisavô pinga de tua foicefoice da tua violação ainda corta o grito de minha avó LEITO de sangue negroemudecido no espanto clamor de tragédia não esquecida crime não punido nem perdoadoqueimam minhas entranhasPEITO pesado ao peso da madrugada de chumboorvalho de fel amargoorvalhando os passos de minha mãena oferta compulsória …

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Anseio – Adalgisa Nery

Quero que desça sobre mim a grande sombra que alivia, Aquela que arranca do meu coração a revolta que me impede de ser mansa. Quero descansar… Quero encontrar aquele que é mais belo que o sol, Que aumenta o meu sofrimento e que ajuda na minha redenção, Que reparte suas angústias comigo para que lhe …

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Aspiração – Adalgisa Nery

Antes que vingue outra esperança Quero as sombras do branco espesso. Antes que mais uma insônia se cumpra Quero o torpor no abismo indecifrável Do espírito amortalhado. Antes que o pensamento acorde E descubra os espaços petrificados, Quero narcotizar-me sem sonhos E deitar-me no mundo sem sombras, Sem palavras nem gestos. Antes que alguma crença …

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Abandono – Adalgisa Nery

A exaustão faminta Procura elementos ainda vivos no meu ser Talvez guardados em escuros vácuos Que carrego sem saber. Alimenta-se do sopro das imagens Desenhadas pela minha imaginação Pelo tato dos meus sentimentos, Pelo pânico do desconhecido. Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes Descoloridas e sem sabor de vida. A exaustão sobe pelos meus pés, Cobre os meus gestos incipientes, Prende a minha língua, Suga o …

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Cemitério Adalgisa – Adalgisa Nery

Moram em mim Fundos de mares, estrelas-d′alva, Ilhas, esqueletos de animais, Nuvens que não couberam no céu, Razões mortas, perdões, condenações, Gestos de amparo incompleto, O desejo do meu sexo E a vontade de atingir a perfeição. Adolescências cortadas, velhices demoradas, Os braços de Abel e as pernas de Caim. Sinto que não moro. Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas É habitada pelos corpos. Moram …

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Estigma – Adalgisa Nery

Não receio que partas para longe, Que faças por fugir, por te livrares Da força da minha voz E da compreensão do meu olhar. Não temo que os mares te levem No bojo dos transatlânticos Nem tampouco me amedronta Que em possantes aviões No céu e na terra, Em todos os seres me encontrarás Cortes …

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Clima – Orides Fontela

Neste lugar marcado: campo onde uma árvore única se alteia e o alongado gesto absorvendo todo o silêncio – ascende e                     imobiliza-se (som antes da voz pré-vivo ou além da voz e vida) neste lugar marcado: campo                 …

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Fala – Orides Fontela

Tudoserá difícil de dizer:a palavra realnunca é suave. Tudo será duro:luz impiedosaexcessiva vivênciaconsciência demais do ser Tudo seráCapaz de ferir. SeráAgressivamente real.Tão real que nos despedaça.Não há piedade nos signosE nem no amor: o serÉ excessivamente lúcidoE a palavra é densa e nos fere(toda a palavra é crueldade)– Orides Fontela, do livro “Transposição”, em “Poesia …

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Mãos – Orides Fontela

Com as mãos nuas lavrar o campo:  as mãos se ferindo nos seres, arestas da subjacente unidade  as mãos desenterrando luzesfragmentos do anterior espelho  com as mãos nuas lavrar o campo:  desnudar a estrela essencial sem ter piedade do sangue. – Orides Fontela, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 20. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Pouso – Orides Fontela

Ó pássaro, em minha mãoencontram-setua liberdade intactaminha aguda consciência. Ó pássaro, em minha mãoteu cantode vitalidade puraencontra a minha humanidade. Ó pássaro, em minha mãopousadoserá possível cantarmosem uníssono se és o raro pousodo sentimento vivoe eu, pranto vertido na palavra?– Orides Fontela, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, …

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Dor eterna – Júlia Cortines

O tempo – dizem – apagaO prazer e o sofrimentoSobre eles rolando a vagaSombria do esquecimento.E transforma encantadoresSítios, que tu, Abril, vestesDe uma gaze de esplendores,Em sítios feios e agrestes.E faz germinar nas águas,Que bebe a gandra bravia,O lírio, como das mágoasBrota a flor da alegria.E, no entretanto, contemplo,Extática e dolorosa,Entre os escombros de um …

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O peixe – Patativa do Assaré

 Tendo por berço o lago cristalino, Folga o peixe, a nadar todo inocente, Medo ou receio do porvir não sente, Pois vive incauto do fatal destino. Se na ponta de um fio longo e fino A isca avista, ferra-a insconsciente, Ficando o pobre peixe de repente, Preso ao anzol do pescador ladino. O camponês, também, …

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Sina – Patativa do Assaré

Eu venho desde menino Desde muito pequenino Cumprindo o belo destino Que me deu Nosso Senhor Não nasci pra ser guerreiro Nem infeliz estrangeiro Eu num me entrego ao dinheiro Só ao olhar do meu amor Carrego nesses meus ombros O sinal do Redentor E tenho nessa parada Quanto mais feliz eu sou Eu nasci …

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Canal – Patrícia Galvão

Nada mais sou que um canal Seria verde se fosse o caso Mas estão mortas todas as esperanças Sou um canal Sabem vocês o que é ser um canal? Apenas um canal? Evidentemente um canal tem as suas nervuras As suas nebulosidades As suas algas Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas Mas por favor Não pensem …

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Alma solitária – Júlia Cortines

O que sentias era o que ninguém sentia:– O ódio, o amor, a saudade, a revolta tremenda.Não há ninguém que te ame e te console e entenda.Ninguém compartilhou tua funda agonia.A alma que possuir acreditaste, um dia,Indiferente, vai a trilhar outra senda.Do infinito deserto ergueste a tua tendaEm meio à solidão da paisagem vazia…E ora …

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Eternidade – Júlia Cortines

Eternidade d’alma! ilusória miragem, Que a alma busca através da crença e do terror, A idear uma calma ou sombria paragem De infinito prazer ou de infinita dor!Por que há de haver além, noutro mundo distante, Um prêmio eterno para a virtude mortal? E para o ser que vive apenas um instante Por que há …

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Anfitrite – Júlia Cortines

(Sobre uma página de Fénelon) Tinta a escama de azul e de oiro, solevandoEm seus brincos a vaga espúmea, pelo bandoDos alegres tritões, que os búzios retorcidosSopram, enchendo o ar de músicos ruídos,Acompanhados, vão os ligeiros golfinhosSeguindo de Anfitrite o carro, que marinhosCorcéis, – que têm na cor cetinosa do peloA brancura da neve e …

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Soledade – Júlia Cortines

Poeta, dentro de ti, desmesurado e arcano,Ou se cava, ou se empola, ou se espedaça o oceanoDe tua alma, que exala um contínuo clamor,– Brados de imprecações e soluços de dor!Nele canta e suspira a lânguida sereiaDo Amor; a Mágoa geme; a Cólera estrondeia;E a essas vozes se prende a dolorida vozDa Saudade, chorando o …

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A um cadáver – Júlia Cortines

Eis-te, enfim, a dormir o teu sono de morte:Semicerrado o olhar, as pupilas serenas,Na atitude de quem nada teme da sorte,Deslembrado do amor e esquecido das penas.Nada pode turbar-te em teu repouso: estalaO raio, a lacerar das nuvens os vestidos;No espaço a luz se extingue, o estampido se cala,Sem vir ferir-te o olhar ou ferir-te …

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Sonhadores – Júlia Cortines

Almas – da natureza a execrada exceção – Em que o Sonho ateou seu nefasto clarão, Vós que, presas à terra, a asa do pensamento Sentis sempre a voar, em livre movimento, Para o distante azul dos mundos ideais, Onde o bem que buscais não existiu jamais; Vós que abris, procurando o mistério das coisas, …

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Finis – Júlia Cortines

Ouço um surdo, abafado e discorde ruído, Logo após um fragor que pelos ares trona. Qual se dum terremoto o solo sacudido Fosse, em torno de mim tudo se desmorona. O que é feito de vós, altivos monumentos, Que afrontáveis do tempo os inúteis furores, Mergulhando no azul dos largos firmamentos, Mergulhando dos céus nos …

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Por toda parte – Júlia Cortines

Interrogaste a vida: interrogaste o arcano, Misterioso sentir do coração humano; A mesta palidez serena do luar; O murmúrio plangente e soturno do mar; O réptil, que rasteja; o pássaro, que voa; A fera, cujo berro as solidões atroa; A desenfreada fúria insana do tufão; A planta a se estorcer numa atroz convulsão. Interrogaste, enfim, …

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Poesia perdida – Jacinta Passos

Ó! a poesia deste momento que passa,a grande poesia vivida neste instantepor todos os seres da terra,que palpita nas coisas mais simplescomo um rastro luminoso da Belezae, sem uma voz humana para eternizá-la,se perde para sempre, inutilmente…Por que existo, Senhor, quando não posso cantar?– Jacinta Passos (1933?), em  parte I “Momentos de Poesia”, do livro …

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A missão do poeta – Jacinta Passos

No instante inicial da criação,quando o mundo acabava de sairdas mãos de Deus,e quando as coisas todas palpitavam,quentes ainda do seu sopro criador,escutou-se o primeiro cântico, na terra,glorificando o Senhor.Cantao poeta porque seu destino é cantar.Cantar o mesmo canto que irrompeudos lábios do primeiro homem criado,ante a maravilhosa visão da beleza.da esplêndida harmonia universal.Cantar ao …

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Canção atual – Jacinta Passos

Plantei meus pés foi aqui amor, neste chão.Não quero a rosa do tempo abertanem o cavalo de nuvemnão quero as tranças de Julieta.Este chão já comeu coisa tanta que eu mesma nem sei,bichopedralixolumemuita cabeça de rei.Muita cidade madura e muito livro da lei.Quanto deus caiu do céu tanto riso neste chão,fala de servo caladopisadosoluço de …

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Cântico de exílio – Jacinta Passos

Estou cansada, Senhor.Minha alma insaciável,a minha alma faminta de beleza,ávida de perfeição,é perseguida pelo teu amor.Puseste dentro dela esta ânsia infinitacujo ardor queima,como a sede que em pleno deserto escaldantepersegue o viajor.Esta angústia, que cresce e que vibra e palpita,nasceu dentro em mimno mesmo divino instanteem que, morrendo a última ilusão,só me restava afinaluma fria …

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Diálogo na sombra – Jacinta Passos

– Que dissestes, meu bem?– Esse gosto.Donde será que ele vem?Corpo mortal.Águas marinhas.Virá da morte ou do sal?Esses dois que moram no fundo e no fim.– De quem falas, amor, do mar ou de mim?– Jacinta Passos (1944), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945. Jacinta Passos Autor: Jacinta Passos

O mar – Jacinta Passos

Múrmuro e lento,o mar ao longe se espraia.Geme e brame, ruge e clamao seu tormento,e, soluçando, vem morrer na praia.O mar imenso…Quando eu escuto o seu rumor soturno,fico a cismar.Pensono destino do mar– ser eterno cantor –cantar a sua dor de eterno insatisfeito,cantar o seu sonho infinito desfeito,cantar o mesmo canto que embaloua infância do …

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Sangue Negro – Jacinta Passos

para Jorge Amado Terras curvas do Recôncavoonde adormece o oceano,no teu subsolo circulasangue negro cor da noite,da cor do preto africano,preto cujo sangue escravoregou o solo baiano.Terras curvas do Recôncavoonde adormece o oceano,de tuas veias abertasescorreo petróleo baiano,sangue negro do Brasil. Operário mestiço!tuas ásperas mãos – e tu não sabes disso –tuas mãos quando movem as …

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Catedral – Alphonsus de Guimaraens

Entre brumas, ao longe, surge a aurora.O hialino orvalho aos poucos se evapora,Agoniza o arrebol.A catedral ebúrnea do meu sonhoAparece, na paz do céu risonho,Toda branca de sol. E o sino canta em lúgubres responsos:“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” O astro glorioso segue a eterna estrada.Uma áurea seta lhe cintila em cadaRefulgente raio de luz.A catedral …

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O poema – Ivan Junqueira

Não sou eu que escrevo o meu poema:ele é que se escreve e que se pensa,como um polvo a distender-se, lento,no fundo das águas, entre anêmonasque nos abismos do mar despencam.Ele é que se escreve com a penada memória, do amor, do tormento,de tudo o que aos poucos se relembra:um rosto, uma paisagem, a intensapulsação …

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Relâmpago – Ivan Junqueira

A navalha de luz do relâmpagorasga a carne da escuridãocom um estrondo que reboamais alto que as trombetas do Juízo.Será assim o clarão que nos cegaquando a alma, extenuada,galga os degraus da imortalidade?– Ivan Junqueira, em “Essa música”. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. Ivan Junqueira Autor: Ivan Junqueira

Testamento – Ivan Junqueira

Sem trilhas no labirinto,solitário, a passo lento,leio o infausto testamentode um infante agora extinto. O que ensina esse lamentoa quem o escuta e, faminto,só o aprende à luz do instinto,e nunca à do entendimento? Não será acaso o ventoo que nas vértebras sinto?Ou será que apenas minto,e mente-me o pensamento? Não há dor nem sofrimentono …

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Aviso aos náufragos – Paulo Leminski

Esta página, por exemplo,não nasceu para ser lida.Nasceu para ser pálida,um mero plágio da Ilíada,alguma coisa que cala,folha que volta pro galho,muito depois de caída. Nasceu para ser praia,quem sabe Andrômeda, AntártidaHimalaia, sílaba sentida,nasceu para ser últimaa que não nasceu ainda. Palavras trazidas de longepelas águas do Nilo,um dia, esta pagina, papiro,vai ter que ser …

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Poesia: – Paulo Leminski

“words set to music” (Dantevia Pound), “uma viagem aodesconhecido” (Maiakóvski), “cernese medulas” (Ezra Pound), “a fala doinfalável” (Goethe), “linguagemvoltada para a sua própriamaterialidade” (Jakobson),“permanente hesitação entre som esentido” (Paul Valery), “fundação doser mediante a palavra” (Heidegger),“a religião original da humanidade”(Novalis), “as melhores palavras namelhor ordem” (Coleridge), “emoçãorelembrada na tranquilidade”(Wordsworth), “ciência e paixão”(Alfred de Vigny), “se …

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Adminimistério – Paulo Leminski

Quando o mistério chegar,já vai me encontrar dormindo,metade dando pro sábado,outra metade, domingo.Não haja som nem silêncio,quando o mistério aumentar.Silêncio é coisa sem senso,não cesso de observar.Mistério, algo que, penso,mais tempo, menos lugar.Quando o mistério voltar,meu sono esteja tão solto,nem haja susto no mundoque possa me sustentar. Meia-noite, livro aberto.Mariposas e mosquitospousam no texto incerto.Seria …

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Sem título – Paulo Leminski

Eu tão isóscelesVocê ânguloHipótesesSobre o meu tesão Teses síntesesAntítesesVê bem onde pisesPode ser meu coração Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Suprassumo da quintessência – Paulo Leminski

O papel é curto. Viver é comprido. Oculto ou ambíguo, tudo o que eu digo tem ultrassentido. Se rio de mim, me levem a sério. Ironia estéril? Vai nesse ínterim, meu inframistério. Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

XXVII – Jorge de Lima

Há uns eclipses, há; e há outros casos: de sementes de coisas serem outras, rochedos esvoaçados por acasos e acasos serem tudo, coisas todas. Lãs de faces, madeiras invisíveis, visão de coitos entre os impossíveis, folhas brotando de âmagos de bronze, demônios tristes choros nas bifrontes. Tudo é veleiro sobre as ondas íris, condores podem …

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Morte e Vida Severina (trecho) – João Cabral de Melo Neto

— O meu nome é Severino,como não tenho outro de pia.Como há muitos Severinos,que é santo de romaria,deram então de me chamarSeverino de Maria;como há muitos Severinoscom mães chamadas Maria,fiquei sendo o da Mariado finado Zacarias.Mais isso ainda diz pouco:há muitos na freguesia,por causa de um coronelque se chamou Zacariase que foi o mais antigosenhor …

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A educação pela pedra – João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;Para aprender da pedra, frequentá-la;Captar sua voz inenfática, impessoal(pela de dicção ela começa as aulas).A lição de moral, sua resistência friaAo que flui e a fluir, a ser maleada;A de poética, sua carnadura concreta;A de economia, seu adensar-se compacta:Lições da pedra (de fora para dentro,Cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra …

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Dor elegante – Paulo Leminski

Um homem com uma dorÉ muito mais eleganteCaminha assim de ladoCom se chegando atrasadoChegasse mais adiante Carrega o peso da dorComo se portasse medalhasUma coroa, um milhão de dólaresOu coisa que os valha Ópios, édens, analgésicosNão me toquem nesse dorEla é tudo o que me sobraSofrer vai ser a minha última obra Paulo Leminski Autor: …

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O que quer dizer – Paulo Leminski

O que quer dizer diz.Não fica fazendoo que, um dia, eu sempre fiz.Não fica só querendo, querendo,coisa que eu nunca quis.O que quer dizer, diz.Só se dizendo num outroo que, um dia, se disse,um dia, vai ser feliz. Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

A infância – Ariano Suassuna

Sem lei nem Rei, me vi arremessadobem menino a um Planalto pedregoso.Cambaleando, cego, ao Sol do Acaso,vi o mundo rugir. Tigre maldoso. O cantar do Sertão, Rifle apontado,vinha malhar seu Corpo furioso.Era o Canto demente, sufocado,rugido nos Caminhos sem repouso. E veio o Sonho: e foi despedaçado!E veio o Sangue: o marco iluminado,a luta extraviada …

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A estrada – Ariano Suassuna

No relógio do Céu, o Sol ponteiroSangra a Cabra no estranho céu chumboso.A Pedra lasca o Mundo impiedoso,A chama da Espingarda fere o Aceiro. No carrascal do sol, azul braseiro,Refulge o Girassol rubro e fogoso.Como morrer na sombra do meu Pouso?Como enfrentar as flechas desse Arqueiro? Lá fora, o incêndio: o roxo lampadáriodas Macambiras rubras …

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Com licença poética – Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não tão feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, …

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Alfândega – Adélia Prado

O que pude oferecer sem mácula foimeu choro por beleza ou cansaço,um dente exraizado,o preconceito favorável a todas as formasdo barroco na música e o Rio de Janeiroque visitei uma vez e me deixou suspensa.‘Não serve’, disseram. E exigirama língua estrangeira que não aprendi,o registro do meu diploma extraviadono Ministério da Educação, mais taxa sobre …

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Momento – Adélia Prado

Enquanto eu fiquei alegre,permaneceram um bule azul com um descascado no bico,uma garrafa de pimenta pelo meio,um latido e um céu limpidíssimocom recém-feitas estrelas.Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,constituindo o mundo pra mim, anteparopara o que foi um acometimento:súbito é bom ter um corpo pra rire sacudir a cabeça. A vida é mais tempoalegre …

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Fragmento – Adélia Prado

Bem-aventurado o que pressentiuquando a manhã começou:não vai ser diferente da noite.Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,o pensamento dividido entre deitar-se primeiroà esquerda ou à direitae mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,um vento bom entra nessa janela. Adélia Prado Autor: Adélia Prado

Casamento – Adélia Prado

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto …

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Apanhador de desperdícios – Manoel de Barros

Uso a palavra para compor meus silêncios.Não gosto das palavrasfatigadas de informar.Dou mais respeitoàs que vivem de barriga no chãotipo água pedra sapo.Entendo bem o sotaque das águasDou respeito às coisas desimportantese aos seres desimportantes.Prezo insetos mais que aviões.Prezo a velocidadedas tartarugas mais que a dos mísseis.Tenho em mim um atraso de nascença.Eu fui aparelhadopara …

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Retrato do artista quando coisa – Manoel de Barros

A maior riquezado homemé sua incompletude.Nesse pontosou abastado.Palavras que me aceitamcomo sou— eu não aceito.Não aguento ser apenasum sujeito que abreportas, que puxaválvulas, que olha orelógio, que compra pãoàs 6 da tarde, que vailá fora, que aponta lápis,que vê a uva etc. etc.Perdoai. Mas eupreciso ser Outros.Eu pensorenovar o homemusando borboletas. Manoel de Barros Autor: …

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Aprendimentos – Manoel de Barros

O filósofo Kierkegaard me ensinou que culturaé o caminho que o homem percorre para se conhecer.Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fimfalou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisasdi-menor com a natureza. Aprendeu que as folhasdas árvores servem para nos ensinar a …

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O sonho – Clarice Lispector

Sonhe com aquilo que você quer ser,porque você possui apenas uma vidae nela só se tem uma chancede fazer aquilo que quer. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.Dificuldades para fazê-la forte.Tristeza para fazê-la humana.E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas.Elas sabem fazer o melhor das oportunidadesque aparecem …

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Soneto do amigo – Vinícius de Moraes

Enfim, depois de tanto erro passadoTantas retaliações, tanto perigoEis que ressurge noutro o velho amigoNunca perdido, sempre reencontrado. É bom sentá-lo novamente ao ladoCom olhos que contêm o olhar antigoSempre comigo um pouco atribuladoE como sempre singular comigo. Um bicho igual a mim, simples e humanoSabendo se mover e comoverE a disfarçar com o meu …

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A valsa – Casimiro de Abreu

Tu, ontem,Na dançaQue cansa,VoavasCo’as facesEm rosasFormosasDe vivo,LascivoCarmim;Na valsaTão falsa,Corrias,Fugias,Ardente,Contente,Tranqüila,Serena,Sem penaDe mim! Quem deraQue sintasAs doresDe amoresQue loucoSenti!Quem deraQue sintas!…— Não negues,Não mintas…— Eu vi!… Valsavas:— Teus belosCabelos,Já soltos,Revoltos, Saltavam,Voavam,BrincavamNo coloQue é meu;E os olhosEscurosTão puros,Os olhosPerjurosVolvias,Tremias,Sorrias,P’ra outroNão eu! Quem deraQue sintasAs doresDe amoresQue loucoSenti!Quem deraQue sintas!…— Não negues,Não mintas…— Eu vi!… Meu Deus!Eras belaDonzela,Valsando,Sorrindo,Fugindo,Qual silfoRisonhoQue em …

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Deus – Casimiro de Abreu

Eu me lembro! eu me lembro! – Era pequeno E brincava na praia; o mar bramia E, erguendo o dorso altivo, sacudia A branca escuma para o céu sereno. E eu disse a minha mãe nesse momento: “Que dura orquestra! Que furor insano! “Que pode haver maior do que o oceano, “Ou que seja mais forte do que o vento?!” – Minha mãe …

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Saudades – Casimiro de Abreu

Nas horas mortas da noiteComo é doce o meditarQuando as estrelas cintilamNas ondas quietas do mar;Quando a lua majestosaSurgindo linda e formosa,Como donzela vaidosaNas águas se vai mirar! Nessas horas de silêncio,De tristezas e de amor,Eu gosto de ouvir ao longe,Cheio de mágoa e de dor,O sino do campanárioQue fala tão solitárioCom esse som mortuárioQue …

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Moreninha – Casimiro de Abreu

Moreninha, Moreninha,Tu és do campo a rainha,Tu és senhora de mim;Tu matas todos d’amores,Faceira, vendendo as floresQue colhes no teu jardim. Quando tu passas n’aldeiaDiz o povo à boca cheia:– “Mulher mais linda não há“Ai! vejam como é bonita“Co’as tranças presas na fita,“Co’as flores no samburá! – Tu és meiga, és inocenteComo a rola que …

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Segredos – Casimiro de Abreu

Eu tenho uns amores – quem é que os não tinhaNos tempos antigos? – Amar não faz mal;As almas que sentem paixão como a minhaQue digam, que falem em regra geral.– A flor dos meus sonhos é moça e bonitaQual flor entreaberta do dia ao raiar,Mas onde ela mora, que casa ela habita,Não quero, não …

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O leão – Vinícius de Moraes

Leão! Leão! Leão!Rugindo como o trovãoDeu um pulo, e era uma vezUm cabritinho montês. Leão! Leão! Leão!És o rei da criação Tua goela é uma fornalhaTeu salto, uma labaredaTua garra, uma navalhaCortando a presa na queda. Leão longe, leão pertoNas areias do deserto.Leão alto, sobranceiroJunto do despenhadeiro.Leão na caça diurnaSaindo a correr da furna.Leão! Leão! …

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Poema de Natal – Vinícius de Moraes

Para isso fomos feitos:Para lembrar e ser lembradosPara chorar e fazer chorarPara enterrar os nossos mortos —Por isso temos braços longos para os adeusesMãos para colher o que foi dadoDedos para cavar a terra.Assim será nossa vida:Uma tarde sempre a esquecerUma estrela a se apagar na trevaUm caminho entre dois túmulos —Por isso precisamos velarFalar …

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Parto – Miriam Alves

Uma batida surdadói ouvirViver viverpresa na gaiolapássaraJá vi o infinitofui constelaçãoAgora asteroide vagandoestrela cadentedividi-me em duasDividida para não ser subtraídafiquei inteira amolgada em cada pedaçochorei porque eu nascia– Miriam Alves, em “Cadernos Negros”. n. 25, São Paulo: Quilombhoje, 2002. Miriam Alves Autor: Miriam Alves

O tempo – Mário Quintana

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…Quando se vê, já é 6ª-feira…Quando se vê, passaram 60 anos!Agora, é tarde demais para ser reprovado…E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,eu nem olhava o relógioseguia sempre em frente… E …

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Guardiãs – Miriam Alves

Esconderei meu sofrimentonas entranhas do ventoguardarei as lágrimasno pote das nuvensreavaliarei as intenções   da naturezaFarei das montanhasguardiãs de meus segredos Escreverei com um coriscoo fogo das emoçõesas verdades de hojepara não serem segredos de amanhã. Miriam Alves Autor: Miriam Alves

Mnu – Miriam Alves

Eu sei:“havia uma faca         atravessando os olhos gordos                em esperançashavia um ferro em brasa         tostando as costas         retendo as lutashavia mordaças pesadas         esparadrapando as ordens               das palavras”Eu sei:    Surgiu …

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Erro – Machado de Assis

Erro é teu. Amei-te um diaCom esse amor passageiroQue nasce na fantasiaE não chega ao coração;Não foi amor, foi apenasUma ligeira impressão;Um querer indiferente,Em tua presença, vivo,Morto, se estavas ausente,E se ora me vês esquivo,Se, como outrora, não vêsMeus incensos de poetaIr eu queimar a teus pés,É que, — como obra de um dia,Passou-me essa …

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No alto – Machado de Assis

O poeta chegara ao alto da montanha,E quando ia a descer a vertente do oeste,Viu uma cousa estranha,Uma figura má.Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,Num tom medroso e agrestePergunta o que será.Como se perde no ar um som festivo e doce,Ou bem como se fosseUm pensamento …

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Stella – Machado de Assis

Já raro e mais escassoA noite arrasta o manto,E verte o último prantoPor todo o vasto espaço. Tíbio clarão já coraA tela do horizonte,E já de sobre o monteVem debruçar-se a aurora À muda e torva irmã,Dormida de cansaço,Lá vem tomar o espaçoA virgem da manhã. Uma por uma, vãoAs pálidas estrelas,E vão, e vão …

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Visio – Machado de Assis

Eras pálida. E os cabelos,Aéreos, soltos novelos,Sobre as espáduas caíamOs olhos meio-cerradosDe volúpia e de ternuraEntre lágrimas luziamE os braços entrelaçados,Como cingindo a ventura,Ao teu seio me cingiram Depois, naquele delírio,Suave, doce martírioDe pouquíssimos instantesOs teus lábios sequiosos,Frios trêmulos, trocavamOs beijos mais delirantes,E no supremo dos gozosAnte os anjos se casavamNossas almas palpitantesDepois a verdade,A …

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Bilhete – Mário Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinhoNão o grites de cima dos telhadosDeixa em paz os passarinhosDeixa em paz a mim!Se me queres,enfim,tem de ser bem devagarinho, Amada,que a vida é breve, e o amor mais breve ainda… Mário Quintana Autor: Mário Quintana

Esperança – Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do AnoVive uma louca chamada EsperançaE ela pensa que quando todas as sirenasTodas as buzinasTodos os reco-recos tocaremAtira-seE — ó delicioso voo!Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,Outra vez criança…E em torno dela indagará o povo:— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?E ela lhes dirá(É …

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Aquela – Hilda Hilst

Aflição de ser eu e não ser outra.Aflição de não ser, amor, aquelaQue muitas filhas te deu, casou donzelaE à noite se prepara e se adivinhaObjeto de amor, atenta e bela. Aflição de não ser a grande ilhaQue te retém e não te desespera.(A noite como fera se avizinha) Aflição de ser água em meio …

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Desejo – Hilda Hilst

Quem és? Perguntei ao desejo. Respondeu: lava. Depois pó. Depois nada. IPorque há desejo em mim, é tudo cintilância.Antes, o cotidiano era um pensar alturasBuscando Aquele Outro decantadoSurdo à minha humana ladradura.Visgo e suor, pois nunca se faziam.Hoje, de carne e osso, laborioso, lascivoTomas-me o corpo. E que descanso me dásDepois das lidas. Sonhei penhascosQuando …

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Passeio – Hilda Hilst

De um exílio passado entre a montanha e a ilhaVendo o não ser da rocha e a extensão da praia.De um esperar contínuo de navios e quilhasRevendo a morte e o nascimento de umas vagas.De assim tocar as coisas minuciosa e lentaE nem mesmo na dor chegar a compreendê-las.De saber o cavalo na montanha. E …

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Círculo vicioso – Machado de Assis

Bailando no ar, gemia inquieto vagalume:“Quem me dera que eu fosse aquela loira estrelaQue arde no eterno azul, como uma eterna vela!”Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:“Pudesse eu copiar-te o transparente lume,Que, da grega coluna à gótica janela,Contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela”Mas a lua, fitando o sol com azedume:“Mísera! Tivesse eu …

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Oferta de Aninha (aos moços) – Cora Coralina

Eu sou aquela mulhera quem o tempomuito ensinou.Ensinou a amar a vida.Não desistir da luta.Recomeçar na derrota.Renunciar a palavras e pensamentos negativos.Acreditar nos valores humanos.Ser otimista.Creio numa força imanenteque vai ligando a família humananuma corrente luminosade fraternidade universal.Creio na solidariedade humana.Creio na superação dos errose angústias do presente.Acredito nos moços.Exalto sua confiança,generosidade e idealismo.Creio nos …

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Saber viver – Cora Coralina

Não sei…se a vida é curtaou longa demais para nós.Mas sei que nada do que vivemostem sentido,se não tocarmos o coração das pessoas. Muitas vezes basta ser:colo que acolhe,braço que envolve,palavra que conforta,silêncio que respeita,alegria que contagia,lágrima que corre,olhar que sacia,amor que promove. E isso não é coisa de outro mundo:é o que dá sentido …

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I-Juca-Pirama – Gonçalves Dias

                      I No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos – cobertos de flores, Alteiam-se os tetos d’altiva nação; São muitos seus filhos, nos ânimos fortes, Temíveis na guerra, que em densas coortes Assombram das matas a imensa extensão. São rudos, severos, sedentos de glória, Já prélios incitam, já …

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O canto do piaga – Gonçalves Dias

           I Ó guerreiros da Taba sagrada,Ó guerreiros da Tribo Tupi,Falam Deuses nos cantos do Piaga,Ó guerreiros, meus cantos ouvi.     Esta noite – era a lua já morta –Anhangá me vedava sonhar;Eis na horrível caverna, que habito,Rouca voz começou-me a chamar.  Abro os olhos, inquieto, medroso,Manitôs! que prodígios que vi!Arde o pau de …

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A vida é líquida – Hilda Hilst

É crua a vida. Alça de tripa e metal.Nela despenco: pedra mórula ferida.É crua e dura a vida. Como um naco de víbora.Como-a no livro da línguaTinta, lavo-te os antebraços, Vida, lavo-meNo estreito-poucoDo meu corpo, lavo as vigas dos ossos, minha vidaTua unha púmblea, me casaco rossoE perambulamos de coturno pela ruaRubras, góticas, altas de …

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Amor – Hilda Hilst

Que este amor não me cegue nem me siga. E de mim mesma nunca se aperceba. Que me exclua de estar sendo perseguida E do tormento De só por ele me saber estar sendo. Que o olhar não se perca nas tulipas Pois formas tão perfeitas de beleza Vêm do fulgor das trevas. E o …

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Estrela perigosa – Clarice Lispector

Estrela perigosaRosto ao ventoMarulho e silêncioleve porcelanatemplo submersotrigo e vinhotristeza de coisa vividaárvores já floresceramo sal trazido pelo ventoconhecimento por encantaçãoesqueleto de idéiasora pro nobisDecompor a luzmistério de estrelaspaixão pela exatidãocaça aos vagalumes.Vagalume é como orvalhoDiálogos que disfarçam conflitos por explodirEla pode ser venenosa como às vezes o cogumelo é. No obscuro erotismo de vida …

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Eu – Clarice Lispector

Sou composta por urgências:minhas alegrias são intensas;minhas tristezas, absolutas.Entupo-me de ausências,Esvazio-me de excessos.Eu não caibo no estreito,eu só vivo nos extremos. Pouco não me serve,médio não me satisfaz,metades nunca foram meu forte! Todos os grandes e pequenos momentos,feitos com amor e com carinho,são pra mim recordações eternas.Palavras até me conquistam temporariamente…Mas atitudes me perdem ou …

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Mão – Clarice Lispector

Agora preciso de tua mão,não para que eu não tenha medo,mas para que tu não tenhas medo.Sei que acreditar em tudo isso será,no começo, a tua grande solidão.Mas chegará o instante em que me darás a mão,não mais por solidão, mas como eu agora:Por amor. Clarice Lispector Autor: Clarice Lispector

Mas há a vida – Clarice Lispector

Mas há a vidaque é para serintensamente vivida, há o amor. Que tem que ser vividoaté a última gota.Sem nenhum medo.Não mata. Clarice Lispector Autor: Clarice Lispector

Nossa truculência – Clarice Lispector

Quando penso na alegria vorazcom que comemos galinha ao molho pardo,dou-me conta de nossa truculência.Eu, que seria incapaz de matar uma galinha,tanto gosto delas vivasmexendo o pescoço feioe procurando minhocas.Deveríamos não comê-las e ao seu sangue?Nunca.Nós somos canibais,é preciso não esquecer.E respeitar a violência que temos.E, quem sabe, não comêssemos a galinha ao molho pardo,comeríamos …

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Passional – Clarice Lispector

Sou um ser totalmente passional.Sou movida pela emoção, pela paixão…. tenho meus desatinos…Detesto coisas mais ou menos.Não sei conviver com pessoas mais ou menos Não sei amar mais ou menos.Não me entrego de forma mais ou menos.Se você procura alguém coerente, sensata, politicamente correta, racional, cheia de moralismo… ESQUEÇA-ME!Se você sabe conviver com pessoas intempestivas, …

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Quero escrever o borão vermelho de sangue – Clarice Lispector

Quero escrever o borrão vermelho de sanguecom as gotas e coágulos pingandode dentro para dentro.Quero escrever amarelo-ourocom raios de translucidez.Que não me entendampouco-se-me-dá.Nada tenho a perder.Jogo tudo na violênciaque sempre me povoou,o grito áspero e agudo e prolongado,o grito que eu,por falso respeito humano,não dei. Mas aqui vai o meu berrome rasgando as profundas entranhasde …

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Sonhe – Clarice Lispector

Seja o que você quer ser, porque você possui apenas uma vida e nela só se tem uma chance de fazer aquilo que quer. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce. Dificuldades para fazê-la forte. Tristeza para fazê-la humana. E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não têm as melhores coisas. Elas sabem …

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Para ir à lua – Cecília Meireles

Enquanto não têm foguetespara ir à Luaos meninos deslizam de patinetepelas calçadas da rua. Vão cegos de velocidade:mesmo que quebrem o nariz,que grande felicidade!Ser veloz é ser feliz. Ah! se pudessem ser anjosde longas asas!Mas são apenas marmanjos. Cecília Meireles Autor: Cecilia Meireles

A lucidez perigosa – Clarice Lispector

Estou sentindo uma clareza tão grandeque me anula como pessoa atual e comum:é uma lucidez vazia, como explicar?assim como um cálculo matemático perfeitodo qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizervendo claramente o vazio.E nem entendo aquilo que entendo:pois estou infinitamente maior que eu mesma,e não me alcanço.Além do que:que faço dessa lucidez?Sei …

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Vandalismo – Augusto dos Anjos

Meu coração tem catedrais imensas,Templos de priscas e longínquas datas,Onde um nume de amor, em serenatas,Canta a aleluia virginal das crenças. Na ogiva fúlgida e nas colunatasVertem lustrais irradiações intensas,Cintilações de lâmpadas suspensas,E as ametistas e os florões e as pratas. Como os velhos Templários medievais,Entrei um dia nessas catedraisE nesses templos claros e risonhos… …

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Versos íntimos – Augusto dos Anjos

Vês?! Ninguém assistiu ao formidávelEnterro de tua última quimera.Somente a Ingratidão — esta pantera —Foi tua companheira inseparável! Acostuma-te à lama que te espera!O Homem, que, nesta terra miserável,Mora, entre feras, sente inevitávelNecessidade de também ser fera. Toma um fósforo. Acende teu cigarro!O beijo, amigo, é a véspera do escarro,A mão que afaga é a …

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Volúpia imortal – Augusto dos Anjos

Cuidas que o genesíaco prazer,Fome do átomo e eurítmico transporteDe todas as moléculas, aborteNa hora em que a nossa carne apodrecer?! Não! Essa luz radial, em que arde o Ser,Para a perpetuação da Espécie forte,Tragicamente, ainda depois da morte,Dentro dos ossos, continua a arder! Surdos destarte a apóstrofes e brados,Os nossos esqueletos descamados,Em convulsivas contorções …

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Meus oito anos – Casimiro de Abreu

Oh ! que saudades que eu tenhoDa aurora da minha vida,Da minha infância queridaQue os anos não trazem mais !Que amor, que sonhos, que flores,Naquelas tardes fagueirasÀ sombra das bananeiras,Debaixo dos laranjais ! Como são belos os diasDo despontar da existência !– Respira a alma inocênciaComo perfumes a flor;O mar é – lago sereno,O céu …

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Violeta – Casimiro de Abreu

Sempre teu lábio severoMe chama de borboleta!– Se eu deixo as rosas do pradoÉ só por ti – violeta! Tu és formosa e modesta,As outras são tão vaidosas!Embora vivas na sombraAmo-te mais do que às rosas. A borboleta travessaVive de sol e de flores.– Eu quero o sol de teus olhos,O néctar dos teus amores! …

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Anseio – Augusto dos Anjos

Que sou eu, neste ergástulo das vidasDanadamente, a soluçar de dor?!– Trinta triliões de células vencidas,Nutrindo uma efeméride inferior. Branda, entanto, a afagar tantas feridas,A áurea mão taumitúrgica do AmorTraça, nas minhas formas carcomidas,A estrutura de um mundo superior! Alta noite, esse mundo incoerenteEssa elementaríssima sementeDo que hei de ser, tenta transpor o Ideal… Grita …

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Apocalipse – Augusto dos Anjos

Minha divinatória Arte ultrapassaos séculos efêmeros e notaDiminuição dinâmica, derrotaNa atual força, integérrima, da Massa. É a subversão universal que ameaçaA Natureza, e, em noite aziaga e ignota,Destrói a ebulição que a água alvorotaE põe todos os astros na desgraça! São despedaçamentos, derrubadas,Federações sidéricas quebradas…E eu só, o último a ser, pelo orbe adeante, Espião …

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O Deus verme – Augusto dos Anjos

Fator universal do transformismo.Filho da teleológica matéria,Na superabundância ou na miséria,Verme – é o seu nome obscuro de batismo. Jamais emprega o acérrimo exorcismoEm sua diária ocupação funérea,E vive em contubérnio com a bactéria,Livre das roupas do antropomorfismo. Almoça a podridão das drupas agras,Janta hidrópicos, rói vísceras magrasE dos defuntos novos incha a mão… Ah! …

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Vagabundo – Álvares de Azevedo

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,Fumando meu cigarro vaporoso;Nas noites de verão namoro estrelas;Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso! Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;Mas tenho na viola uma riqueza:Canto à lua de noite serenatas,E quem vive de amor não tem pobreza. Não invejo ninguém, nem ouço a raivaNas cavernas do …

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Por mim? – Álvares de Azevedo

Teus negros olhos uma vez fitandoSenti que luz mais branda os acendia,Pálida de langor, eu vi, te olhando,Mulher do meu amor, meu serafim,Esse amor que em teus olhos refletia…Talvez! – era por mim? Pendeste, suspirando, a face pura,Morreu nos lábios teus um ai perdido…Tão ébrio de paixão e de ventura!Mulher de meu amor, meu serafim,Por …

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Meu desejo – Álvares de Azevedo

Meu desejo? era ser a luva brancaQue essa tua gentil mãozinha aperta:A camélia que murcha no teu seio,O anjo que por te ver do céu deserta…. Meu desejo? era ser o sapatinhoQue teu mimoso pé no baile encerra….A esperança que sonhas no futuro,As saudades que tens aqui na terra…. Meu desejo? era ser o cortinadoQue …

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Malva maça – Álvares de Azevedo

De teus seios tão mimososQuem gozasse o talismã!Que ali deitasse a fronteCheia de amoroso afã!E quem nele respirasseA tua malva-maçã! Dá-me essa folha cheirosaQue treme no seio teu!Dá-me a folha… hei de beijá-laSedenta no lábio meu!Não vês que o calor do seioTua malva emurcheceu… (…) Descansar nesses teus braçosFora angélica ventura:Fora morrer — nos teus …

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Para sempre – Carlos Drummond de Andrade

Por que Deus permiteque as mães vão-se embora?Mãe não tem limite,é tempo sem hora,luz que não apagaquando sopra o ventoe chuva desaba,veludo escondidona pele enrugada,água pura, ar puro,puro pensamento.Morrer acontececom o que é breve e passasem deixar vestígio.Mãe, na sua graça,é eternidade.Por que Deus se lembra— mistério profundo —de tirá-la um dia?Fosse eu Rei do …

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Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade

Tenho apenas duas mãose o sentimento do mundo,mas estou cheio de escravos,minhas lembranças escorreme o corpo transigena confluência do amor.Quando me levantar, o céuestará morto e saqueado,eu mesmo estarei morto,morto meu desejo, mortoo pântano sem acordes.Os camaradas não disseramque havia uma guerrae era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente vos peçoque me perdoeis.Quando os …

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Tarde de maio – Carlos Drummond de Andrade

Como esses primitivos que carregam por toda parte omaxilar inferior de seus mortos,assim te levo comigo, tarde de maio,quando, ao rubor dos incêndios que consumiam a terra,outra chama, não perceptível, tão mais devastadora,surdamente lavrava sob meus traços cômicos,e uma a uma, disjecta membra, deixava ainda palpitantese condenadas, no solo ardente, porções de minh’almanunca antes nem …

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Despedida – Álvares de Azevedo

Se entrares, ó meu anjo, alguma vezNa solidão onde eu sonhava em ti,Ah! vota uma saudade aos belos diasQue a teus joelhos pálido vivi! Adeus, minh’alma, adeus! eu vou chorando…Sinto o peito doer na despedida…Sem ti o mundo é um deserto escuroE tu és minha vida… Só por teus olhos eu viver podiaE por teu …

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Fantasia – Álvares de Azevedo

Quanti dolci pensier, quanto disio!DANTE C’est alors que ma voixMurmure un nom tout bas… c’est alors que je voisM’apparaître à demi, jeune, voluptueuse,Sur ma couche penchée une femme amoureuse!………………………..Oh! toi que j’ai rêvée,Femme à mes longs baisers si souvent enlevée,Ne viendras-tu jamais?………………………..CH. DOVALLE À noite sonhei contigo…E o sonho cruel maldigoQue me deu tanta ventura.Uma …

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Fragmento de um canto em cordas de bronze – Álvares de Azevedo

Deixai que o pranto esse palor me queime,Deixai que as fibras que estalaram doresDesse maldito coração me vibremA canção dos meus últimos amores! Da delirante embriaguez de bardoSonhos em que afoguei o ardor da vida,Ardente orvalhos de febris pranteios,Que lucro à alma descrida? Deixai que chore pois. — Nem loucas venhamConsolações a importunar-me as dores:Quero …

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Amar – Carlos Drummond de Andrade

Que pode uma criatura senão,entre criaturas, amar?amar e esquecer, amar e malamar,amar, desamar, amar?sempre, e até de olhos vidrados, amar? Que pode, pergunto, o ser amoroso,sozinho, em rotação universal,senão rodar também, e amar?amar o que o mar traz à praia,o que ele sepulta, e o que, na brisa marinha,é sal, ou precisão de amor, ou …

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Balada do amor através das idades – Carlos Drummond de Andrade

Eu te gosto, você me gostadesde tempos imemoriais.Eu era grego, você troiana,troiana mas não Helena.Saí do cavalo de paupara matar seu irmão.Matei, brigámos, morremos. Virei soldado romano,perseguidor de cristãos.Na porta da catacumbaencontrei-te novamente.Mas quando vi você nuacaída na areia do circoe o leão que vinha vindo,dei um pulo desesperadoe o leão comeu nós dois. Depois …

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Congresso internacional do medo – Carlos Drummond de Andrade

Provisoriamente não cantaremos o amor,que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,não cantaremos o ódio, porque esse não existe,existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,cantaremos o medo dos ditadores, …

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