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À minha extremosa amiga D. Ana Francisca Cordeiro – Maria Firmina dos Reis

Donzela, tu suspiras – esse pranto, Que vem do coração banhar teu rosto, Esse gemer de lânguido penar, Revela amarga dor – imo desgosto: Amiga… acaso cismas ao luar, Terno segredo de ignoto amor?!… Soltas madeixas desprendidas voam Por sobre os ombros de nevada alvura; Tua fronte pálida os pesares c’roam Como auréola de martírio… pura, Cândida virgem… que abandono o teu? Sonhas acaso com …

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Meditação – Maria Firmina dos Reis

(À minha querida irmã – Amália Augusta dos Reis)     Vejamos pois esta deserta praia, Que a meiga lua a pratear começa, Com seu silêncio se harmoniza esta alma, Que verga ao peso de uma sorte avessa. Oh! meditemos na soidão da terra, Nas vastas ribas deste imenso mar; Ao som do vento, que sussurra triste, Por entre os leques do gentil …

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Nas praias do Cumam – Solidão – Maria Firmina dos Reis

Aqui na solidão minh’alma dorme; Que letargo profundo!… Se no leito, A horas mortas me revolvo em dores, Nem ela acorda, nem me alenta o peito.No matutino albor a nívea garça Lá vai tão branca doudejando errante; E o vento geme merencório – além Como chorosa, abandonada amante.E lá se arqueia em ondulação fagueira O brando leque do gentil palmar; E lá nas …

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A rosa – Carolina Maria de Jesus

Eu sou a flor mais formosaDisse a rosaVaidosa!Sou a musa do poeta. Por todos su contempladaE adorada. A rainha predileta.Minhas pétalas aveludadasSão perfumadasE acariciadas. Que aroma rescendente:Para que me serve esta essência,Se a existênciaNão me é concernente… Quando surgem as rajadasSou desfolhadaEspalhadaMinha vida é um segundo.Transitivo é meu viverDe ser…A flor rainha do mundo.– Carolina …

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Humanidade – Carolina Maria de Jesus

Depôis de conhecer a humanidadesuas perversidadessuas ambiçõesEu fui envelhecendoE perdendoas ilusõeso que predomina é amaldadeporque a bondade:Ninguem praticaHumanidade ambiciosaE gananciosaQue quer ficar rica!Quando eu morrer…Não quero renasceré horrivel, suportar a humanidadeQue tem aparência nobreQue encobreAs pesimas qualidades Notei que o ente humanoÉ perverso, é tiranoEgoista interesseirosMas trata com cortêziaMas tudo é ipocresiaSão rudes, e trapaçêiros– …

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Sonhei – Carolina Maria de Jesus

Sonhei que estava mortaVi um corpo no caixãoEm vez de flores eram IivrosQue estavam nas minhas mãosSonhei que estava estendidaNo cimo de uma mesaVi o meu corpo sem vidaEntre quatro velas acesas Ao lado o padre rezavaComoveu-me a sua oraçãoAo bom Deus ele imploravaPara dar-me a salvaçãoSuplicava ao Pai EternoPara amenizar o meu sofrimentoNão me …

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Ensaio sobre nós – Elizandra Souza

Nossas afinidades Tardes de preciosidades suco de cacau com graviola um samba de Cartola ele fumaça, eu incenso ele melodia, eu silêncio Nossas contendas Resolvemos com oferendas Ervas de benzedura Mordida na cintura Lambida no pescoço Esquecemos do almoço Somos estações do ano Períodos de estiagem Épocas de chuva Uma manhã ele me seduz Uma …

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Estradeira – Elizandra Souza

Hoje a poesia veio triste Despedidas são sempre o vazio O que não existirá mais Essa dor que arranha a garganta Embarga a voz E essa liberdade das águas dos olhos Caindo descontroladamente… Hoje a poesia veio triste Como a vitória regia solitária no rio Como uma estradeira que não olha pra trás Fecha a …

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Redemoinhos – Elizandra Souza

Quem pode prender essa ventania que mora em mim? Essa fertilidade de espalhar boas sementes De unir elementos contraditórios dentro de si Tempo que se fecha sem chover, poeira do meu indizível. Fogo que alastra indomável pelo caminho Águas que recuam e voltam com intensidade Nesta instabilidade de nascer tempestade e dissipar-se fogo Fecha meu …

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Do amor – Jenyffer Nascimento

O primeiro homem negro que ameiNão sabia que era negroMas a polícia sabia bem.Tirando os beijos trocados na porta da escolaDemonstração de afeto, coisa rara.Revolta era o sentimento mais comumA maneira de dividir a dorDe dividir a cor. O segundo homem negro que ameiFoi doce, amoroso e companheiroTínhamos o hip-hop como pano de fundoDançamos, vivemos …

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Raízes – Jenyffer Nascimento

Chão de terraTerra pretaPreta é a tua pele.Olhares dispersosOlhares cruzadosSonhos roubados Chão de terraTerra pretaQuebraram-se as correntes.Nunca houve correntesA vontade era tantaNão conseguiu conter. Chão de terraTerra pretaAmanhece.Exalam cheiros íntimos,Pelas fretas contrastam os tonsQuero denegrir. Chão de terraTerra PretaFértil. Cresce uma raiz grossaBrota um desejo únicoSentir seu gosto negro Chão de terraTerra pretaUma descendência inteiraNa …

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Poema de amor – Adalgisa Nery

Ouve-me com teus olhos Porque minha queixa é muda. Acaricia-me com teu pensamento Porque meu corpo está imóvel. Beija-me com tuas mãos Porque minha boca te espera. Fala-me com o silêncio dos momentos de amor Porque os ouvidos da minha vida Se abrirão como as flores Na úmida e infinita madrugada. – Adalgisa Nery, in: …

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Poema essencialista – Adalgisa Nery

Sinto o conteúdo da existência. Procuro ultrapassá-lo com enorme exaltação poética, Rompo as grades do mundo com o espetáculo das formas, Dos sons e das cores. Tudo me afoga em nostalgia de outras eras, De outras vidas que cristalizaram As tendências da minha infância. A utilização das coisas plásticas Altera o equilíbrio da visão. Distribuo …

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Poema simples – Adalgisa Nery

Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite, Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra, Deixa-me recolher a estrela úmida Antes que sua luz desapareça na madrugada, Deixa-me recolher a tristeza da alma Antes que a lágrima banhe a pálpebra Do órfão abandonado e faminto, Deixa-me recolher a ternura …

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Silêncio – Adalgisa Nery

Nas mãos inquietas Cansadas esperanças Tateando formas na luz ausente, Nos olhos embrumados A viva cruz do alívio, Na boca imobilizada A palavra amortalhada. E à tona da fugaz realidade O mistério das surpresas superadas. Paisagem de espaços, e fantasmas Ordenam não falar, não morrer, Ouvir sem conduzir o pensamento, Viver os vazios lúcidos Entre …

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Solidão – Adalgisa Nery

O espírito da tempestade que executa a minha palavra Partiu E minha forma assim abandonada Caiu. Vieram depois a aflição e a agonia E cresceram em mim Como a aurora e o dia. E se eu quisesse contar, homens irmãos, Desde quando meu coração está isento de alegria, Acreditem, Não poderia. Há muitos séculos mora …

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Ternura – Adalgisa Nery

Antes que eu me transforme em água E corra com os rios Cantando para as florestas escuras A canção sublime Deixa-me contemplar tua face amada Para que a canção se eternize. Antes que os meus olhos se transformem nos minúsculos vermes Que movimentam o solo Deixa-me receber a luz de tua boca Para que eu …

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Eterno tédio – Adalgisa Nery

Muitas vezes esgotando o meu destino Com o olhar em pranto E o coração pungente como um dobrar de sino, Ouço ruídos seculares que unem como um canto, Crescendo de intensidade, Mergulhando os meus sentidos Na maior profundidade! Muitas vezes, considerando a vida Com desumana indiferença, Por toda a esperança perdida, Pelo abrir de um …

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Escultura – Adalgisa Nery

Eu já te amava pelas fotografias. Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos, Pelo teu olhar vago e incerto Como o dos que não pararam no riso e na alegria. Te amava por todos os teus complexos de derrota, Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas E até pela indecisão dos teus …

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Eu em ti – Adalgisa Nery

Desejaria estar contigo quando eras no pensamento de Deus, Quando tua mãe te concebeu e te alimentou com sua vida, Desejaria estar contigo na primeira vez que distinguiste as formas, [as cores e os sons, Na tua primeira lágrima eu quisera estar contigo e assim na tua [primeira alegria, Desejaria estar contigo na tua infância …

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Fantasmas – Adalgisa Nery

Lívidos fantasmas deslizam nas horas perdidas  Chegam à minha alma  E como sombras da noite  Levantam os meus ímpetos mortos  Desatando as ligaduras do tempo.  O luar da madrugada fria cai no meu rosto  E ilumina com branda amargura  O meu espírito que espera a hora insolúvel.  Os caminhos cobrem-se de homens que dormem na …

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Instante – Adalgisa Nery

O espanto abriu meu pensamento Com idioma vindo do delírio, Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes, No perdão oferecido sem razão. O espanto abriu meu pensamento Na noite carregada de lamentos Em linguagem universal Fluindo do eco perdido Com passos de presságio amanhecendo. Corpos florindo na pele da terra Acendendo vida nas rosas e …

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Mulher – Adalgisa Nery

Na face, a geografia da angústia, Dos pânicos e das medrosas alegrias. Cada ruga é um presságio. E auréola da aflição constante O esplendor dos cabelos brancos. Uma só raiz para frutos diversos, Uma só vida para destinos tão complexos, Um só pranto para dores tão diversas. O útero que gera o herói, o sábio, …

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Paisagem – Adalgisa Nery

Restam nos meus olhos Séculos de planícies áridas E o vento ríspido que trouxe as lamentações Das sombras agitadas Sobre os pântanos desconhecidos Distantes estão os caminhos Onde eu encontraria a suprema fraqueza Para vergar os meus joelhos E deitar no pó a minha boca moribunda Invisíveis estão as estrelas Que me levariam a contemplar …

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Olhando no espelho – Abdias do Nascimento

(Para meus netos Samora, Alan e Henrique Alberto)Ao espelho te vejo negrinhote reconheço garoto negrovivemos a mesma infânciaa melancolia partilhada do teu profundo olharera a senha e a contra-senhaidentificando nosso destinoconfraria dos humilhadosa povoar de terna lembrançaesta minha evocação de FrancaÉramos um só olharnos papagaios empinadosao sopro fresco do entardecerNegrinho garota negravivemos a mesma infâncianos …

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Oriki da Elisa – Abdias do Nascimento

Amor em Saudade    desatado    de carência física    embotadoAmor de amor pleno    tranbordante    música pungente    latejanteLateja amor as têmporas   as taclas teclam amor   agudo punhal inclemente   apunhalando a dorDor do desamor que   não é meu   nem teu   meu é o   bemquerer que não morreu   associado partilhado   na partilha do que …

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Autobiografia – Abdias do Nascimento

EITO que ressoa no meu sanguesangue do meu bisavô pinga de tua foicefoice da tua violação ainda corta o grito de minha avó LEITO de sangue negroemudecido no espanto clamor de tragédia não esquecida crime não punido nem perdoadoqueimam minhas entranhasPEITO pesado ao peso da madrugada de chumboorvalho de fel amargoorvalhando os passos de minha mãena oferta compulsória …

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Anseio – Adalgisa Nery

Quero que desça sobre mim a grande sombra que alivia, Aquela que arranca do meu coração a revolta que me impede de ser mansa. Quero descansar… Quero encontrar aquele que é mais belo que o sol, Que aumenta o meu sofrimento e que ajuda na minha redenção, Que reparte suas angústias comigo para que lhe …

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Aspiração – Adalgisa Nery

Antes que vingue outra esperança Quero as sombras do branco espesso. Antes que mais uma insônia se cumpra Quero o torpor no abismo indecifrável Do espírito amortalhado. Antes que o pensamento acorde E descubra os espaços petrificados, Quero narcotizar-me sem sonhos E deitar-me no mundo sem sombras, Sem palavras nem gestos. Antes que alguma crença …

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A poesia se esfrega nos seres e nas cousas – Adalgisa Nery

Nunca sentiste uma força melodiosaCercando tudo o que teus olhos vêem,um misto de tristeza numa paisagem grandiosaOu um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidasDeparando com um campo devolutoSemelhante a uma viagem esquecida?Num circo,nunca se apoderou de ti um amargor sutilVendo animais amestrados E logo …

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A rota – Adalgisa Nery

O mundo pulveriza-nos sem revelar Seus intuitos secretos. A vida é contemplá-los nos seus gestos mais sutis E sentir nas águas profundas O que de cada destino foi escrito Nos penhascos dos mares agitados. No vácuo do espírito Anda a forma sem direção Por caminhos já pisados E inseguros são os passos repetidos. Nem sempre …

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Abandono – Adalgisa Nery

A exaustão faminta Procura elementos ainda vivos no meu ser Talvez guardados em escuros vácuos Que carrego sem saber. Alimenta-se do sopro das imagens Desenhadas pela minha imaginação Pelo tato dos meus sentimentos, Pelo pânico do desconhecido. Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes Descoloridas e sem sabor de vida. A exaustão sobe pelos meus pés, Cobre os meus gestos incipientes, Prende a minha língua, Suga o …

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Canção para dentro – Adalgisa Nery

A canção do corpo é cantada para dentro E a leveza da alegria se transmuda em peso, A brisa adere aos amargos pensamentos Fluindo no sorriso compassivo. Logo, Surgindo de células desamadas Os matizes áureos anoitecem, Pálpebras levantadas vão caindo E nesgas apenas vislumbramos, Geografias em nós morrendo, Oceanos crescendo, ilhas sumindo, Rosas nascendo na …

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Cemitério Adalgisa – Adalgisa Nery

Moram em mim Fundos de mares, estrelas-d′alva, Ilhas, esqueletos de animais, Nuvens que não couberam no céu, Razões mortas, perdões, condenações, Gestos de amparo incompleto, O desejo do meu sexo E a vontade de atingir a perfeição. Adolescências cortadas, velhices demoradas, Os braços de Abel e as pernas de Caim. Sinto que não moro. Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas É habitada pelos corpos. Moram …

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Estigma – Adalgisa Nery

Não receio que partas para longe, Que faças por fugir, por te livrares Da força da minha voz E da compreensão do meu olhar. Não temo que os mares te levem No bojo dos transatlânticos Nem tampouco me amedronta Que em possantes aviões No céu e na terra, Em todos os seres me encontrarás Cortes …

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A um homem – Adalgisa Nery

Quando numa rocha porosa Cansado te encostares E dela vires surgir a umidade e depois a gota, Pensa, amado meu, com carinho, Que aí esta a minha boca. Se teus olhos ficarem nas praias E vires o mar ensalivando a areia Com alegria pensa amado meu Num corpo feliz Porque é só teu. Se descansares …

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Repouso – Adalgisa Nery

Dá-me tua mão E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos, Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas. Dá-me tua mão E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido, Te darei por leito a terra amiga E repousarei …

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Mistério – Adalgisa Nery

Há vozes dentro da noite que clamam por mim, Há vozes nas fontes que gritam meu nome. Minha alma distende seus ouvidos E minha memória desce aos abismos escuros Procurando quem chama. Há vozes que correm nos ventos clamando por mim. Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome E eu olho para as …

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Coruja – Orides Fontela

Vôo onde ninguém mais – vivo em luz mínima  ouço o mínimo arfar – farejo o  sangue  e capturo  a presa  em pleno escuro.  – Orides Fontela, em “Rosácea”. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1986, p. 203. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Clima – Orides Fontela

Neste lugar marcado: campo onde uma árvore única se alteia e o alongado gesto absorvendo todo o silêncio – ascende e                     imobiliza-se (som antes da voz pré-vivo ou além da voz e vida) neste lugar marcado: campo                 …

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Eros – Orides Fontela

Cego? Não: livre. Tão livre que não te importa a direção da seta.  Alado? Irradiante. Feridas multiplicadas nascidas de um só                               abismo. Disseminas pólens e aromas. És talvez a                       …

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Fala – Orides Fontela

Tudoserá difícil de dizer:a palavra realnunca é suave. Tudo será duro:luz impiedosaexcessiva vivênciaconsciência demais do ser Tudo seráCapaz de ferir. SeráAgressivamente real.Tão real que nos despedaça.Não há piedade nos signosE nem no amor: o serÉ excessivamente lúcidoE a palavra é densa e nos fere(toda a palavra é crueldade)– Orides Fontela, do livro “Transposição”, em “Poesia …

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Helianto – Orides Fontela

Cânonda flor completametro / valência / ritoda florverbo Círculoexemplar de heliantoflor emito ciclodo complexo espelhoflor eritmo cânon da luz perfeita– Orides Fontela, do livro “Helianto”, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Mãos – Orides Fontela

Com as mãos nuas lavrar o campo:  as mãos se ferindo nos seres, arestas da subjacente unidade  as mãos desenterrando luzesfragmentos do anterior espelho  com as mãos nuas lavrar o campo:  desnudar a estrela essencial sem ter piedade do sangue. – Orides Fontela, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 20. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Minério – Orides Fontela

o metal e seu pálido horizonteo metal tempo opondo-se ao olhar vivo:o metal adensandoe horizonte efronteira invioladaO metal presençaÍntegraopondo às águas seu frioe incorruptível núcleo– Orides Fontela, do livro “Helianto”, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 82. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Poema – Orides Fontela

Saber de cor o silênciodiamante e-ou espelhoo silêncio alémdo branco.Saber seu pesoSeu signo– habitar sua estrelaImpiedosa. Saber seu centro: vazioesplendor alémda vidae vida alémda memória.    Saber de cor o silêncio – e profaná-lo, dissolvê-lo        em palavras.– Orides Fontela, do livro “Alba”, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: …

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Pouso – Orides Fontela

Ó pássaro, em minha mãoencontram-setua liberdade intactaminha aguda consciência. Ó pássaro, em minha mãoteu cantode vitalidade puraencontra a minha humanidade. Ó pássaro, em minha mãopousadoserá possível cantarmosem uníssono se és o raro pousodo sentimento vivoe eu, pranto vertido na palavra?– Orides Fontela, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, …

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Reflexo – Orides Fontela

O lago em círculocírculo águacéu apreendidoeternidade no tempo– Orides Fontela, do livro “Helianto”, em “Poesia Reunida [1969-1996]”. São Paulo: Cosac Naify; Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006, p. 55. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Teia – Orides Fontela

A teia, não Mágica Mas arma, armadilha    a teia, não morta mas sensitiva, vivente   a teia, não arte mas trabalho, tensa a teia, não  arte mas trabalho, tensa   a teia, não virgem mas intensamente                  prenhe:   no  centro a aranha espera. – Orides Fontela, em “Rosácea”. São Paulo: Editora Duas Cidades, 1986. Orides Fontela Autor: Orides Fontela

Dor eterna – Júlia Cortines

O tempo – dizem – apagaO prazer e o sofrimentoSobre eles rolando a vagaSombria do esquecimento.E transforma encantadoresSítios, que tu, Abril, vestesDe uma gaze de esplendores,Em sítios feios e agrestes.E faz germinar nas águas,Que bebe a gandra bravia,O lírio, como das mágoasBrota a flor da alegria.E, no entretanto, contemplo,Extática e dolorosa,Entre os escombros de um …

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Alma solitária – Júlia Cortines

O que sentias era o que ninguém sentia:– O ódio, o amor, a saudade, a revolta tremenda.Não há ninguém que te ame e te console e entenda.Ninguém compartilhou tua funda agonia.A alma que possuir acreditaste, um dia,Indiferente, vai a trilhar outra senda.Do infinito deserto ergueste a tua tendaEm meio à solidão da paisagem vazia…E ora …

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Eternidade – Júlia Cortines

Eternidade d’alma! ilusória miragem, Que a alma busca através da crença e do terror, A idear uma calma ou sombria paragem De infinito prazer ou de infinita dor!Por que há de haver além, noutro mundo distante, Um prêmio eterno para a virtude mortal? E para o ser que vive apenas um instante Por que há …

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Anfitrite – Júlia Cortines

(Sobre uma página de Fénelon) Tinta a escama de azul e de oiro, solevandoEm seus brincos a vaga espúmea, pelo bandoDos alegres tritões, que os búzios retorcidosSopram, enchendo o ar de músicos ruídos,Acompanhados, vão os ligeiros golfinhosSeguindo de Anfitrite o carro, que marinhosCorcéis, – que têm na cor cetinosa do peloA brancura da neve e …

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Ancião africano – Júlia Cortines

A testa negra sob a carapinha branca.Da longa escravidão a tremenda torturaNão lhe alterou da face a expressão de doçura.Um riso bom entreabre a sua boca franca.A vingança do peito um brado não lhe arranca;Em seu tranquilo olhar o rancor não fulgura,Quando, na resignada e humílima postura,Vê se erguer uma mão que ameaça e que …

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Entre abismos – Júlia Cortines

Mistérios só, de um lado, e sombras…Em seguida,A estrada tortuosa e aspérrima da vida,Onde impreca a Revolta, onde brada o Terror,Onde geme a Saudade e se lastima a Dor,E, co’o gesto convulso e os traços descompostos,Batidos pelo vento, à tempestade expostos,Atropelam-se, em doida e febril confusão,O Desespero, a Raiva, a Cólera, a Paixão,Cujo concerto de …

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Indiferente – Júlia Cortines

E vão assim as horas! – Vão fugindoUm após outro os dias voadores,Ao túmulo do olvido conduzindoAs alegrias como os dissabores,O sonho agita as asas multicores,E vai-se e vai-se rápido sumindo,Enquanto a vaga quérula das doresSoluça, e rola pelo espaço infindo…A mim, porém a mim, a mim que importa,A mim, cuja esperança há muito é …

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Soledade – Júlia Cortines

Poeta, dentro de ti, desmesurado e arcano,Ou se cava, ou se empola, ou se espedaça o oceanoDe tua alma, que exala um contínuo clamor,– Brados de imprecações e soluços de dor!Nele canta e suspira a lânguida sereiaDo Amor; a Mágoa geme; a Cólera estrondeia;E a essas vozes se prende a dolorida vozDa Saudade, chorando o …

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O infinito – Júlia Cortines

(G. LEOPARDI)AO DR. ESPERIDIÃO ELOY FILHO. Sempre caro me foi este ermo cole,Mais esta sebe, que de tanta parteO longínquo horizonte à vista oculta.Mas, se me assento, contemplando-a, espaçosIntérminos além, e sobre-humanoSilêncio, e profundíssima quietudeMeu pensamento fantasia; e quaseSe me apavora o coração. Se o ventoOuço fremir nas árvores, aqueleInfinito silêncio a este murmúrioVou comparando: …

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Sinal na fonte – Júlia Cortines

(ADA NEGRI)Uma estrangeira, em púrpuras e gala,Tocou-me a fronte com um dedo, e riu-se.Um frêmito me abala.E disse-me: “Um sinal tu tens na fronte,Talhado em forma de uma cruz bizarra.Tens um sinal na fronte.Dos anos teus no afortunado giroSempre o trarás contigo – pois abriu-oA boca d’um vampiro,Que da tua existência a melhor parteÁvido suga, …

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Sonhadores – Júlia Cortines

Almas – da natureza a execrada exceção – Em que o Sonho ateou seu nefasto clarão, Vós que, presas à terra, a asa do pensamento Sentis sempre a voar, em livre movimento, Para o distante azul dos mundos ideais, Onde o bem que buscais não existiu jamais; Vós que abris, procurando o mistério das coisas, …

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Dies iræ – Júlia Cortines

A esse som de trombeta e de alarma, quem há de Dormir? Mortos, deixai a paz da sepultura E acorrei: o que ouvis é o clarim da Saudade! De pé! de pé! de pé! Despedaçai a dura Lousa que sobre vós lançou o esquecimento, Espectros do sofrer, fantasmas da ventura! Ó divina ilusão, que um …

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Finis – Júlia Cortines

Ouço um surdo, abafado e discorde ruído, Logo após um fragor que pelos ares trona. Qual se dum terremoto o solo sacudido Fosse, em torno de mim tudo se desmorona. O que é feito de vós, altivos monumentos, Que afrontáveis do tempo os inúteis furores, Mergulhando no azul dos largos firmamentos, Mergulhando dos céus nos …

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Por toda parte – Júlia Cortines

Interrogaste a vida: interrogaste o arcano, Misterioso sentir do coração humano; A mesta palidez serena do luar; O murmúrio plangente e soturno do mar; O réptil, que rasteja; o pássaro, que voa; A fera, cujo berro as solidões atroa; A desenfreada fúria insana do tufão; A planta a se estorcer numa atroz convulsão. Interrogaste, enfim, …

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Poesia perdida – Jacinta Passos

Ó! a poesia deste momento que passa,a grande poesia vivida neste instantepor todos os seres da terra,que palpita nas coisas mais simplescomo um rastro luminoso da Belezae, sem uma voz humana para eternizá-la,se perde para sempre, inutilmente…Por que existo, Senhor, quando não posso cantar?– Jacinta Passos (1933?), em  parte I “Momentos de Poesia”, do livro …

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A missão do poeta – Jacinta Passos

No instante inicial da criação,quando o mundo acabava de sairdas mãos de Deus,e quando as coisas todas palpitavam,quentes ainda do seu sopro criador,escutou-se o primeiro cântico, na terra,glorificando o Senhor.Cantao poeta porque seu destino é cantar.Cantar o mesmo canto que irrompeudos lábios do primeiro homem criado,ante a maravilhosa visão da beleza.da esplêndida harmonia universal.Cantar ao …

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Canção atual – Jacinta Passos

Plantei meus pés foi aqui amor, neste chão.Não quero a rosa do tempo abertanem o cavalo de nuvemnão quero as tranças de Julieta.Este chão já comeu coisa tanta que eu mesma nem sei,bichopedralixolumemuita cabeça de rei.Muita cidade madura e muito livro da lei.Quanto deus caiu do céu tanto riso neste chão,fala de servo caladopisadosoluço de …

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Canção da alegria – Jacinta Passos

Urupembaurupembamandioca aipim!peneirarpeneirouque restou no fim?Peneira massa peneira,peneira peneiradinha,(Ai! vida tão peneirada)peneira nossa farinha.Olhe o romboolhe o romboolhe o rombo arrombou!olhe o ciscoolhe o riscourupemba furou!Eh! sai espantalhoda ponta do galho!Escorra! Escorra!Tirai essa borra!Urupembaurupembamandioca aipim!peneirarpeneirouque restou no fim?Farinha fininhapeneiradinha!Ai! vida, que vidanuinha! nuinha!– Jacinta Passos em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945. Jacinta Passos …

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Cantigas das mães – Jacinta Passos

(para minha mãe)Fruto quando amadurececai das árvores no chão,e filho depois que crescenão é mais da gente, não.Eu tive cinco filhinhose hoje sozinha estou.Não foi a morte, não foi,oi!foi a vida que roubou.Tão lindos, tão pequeninos,como cresceram depressa,antes ficassem meninosos filhos do sangue meu,que meu ventre concebeu,que meu leite alimentou.Não foi a morte, não foi,oi!foi …

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Cântico de exílio – Jacinta Passos

Estou cansada, Senhor.Minha alma insaciável,a minha alma faminta de beleza,ávida de perfeição,é perseguida pelo teu amor.Puseste dentro dela esta ânsia infinitacujo ardor queima,como a sede que em pleno deserto escaldantepersegue o viajor.Esta angústia, que cresce e que vibra e palpita,nasceu dentro em mimno mesmo divino instanteem que, morrendo a última ilusão,só me restava afinaluma fria …

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Crepúsculo – Jacinta Passos

Vai lentamente agonizando o dia…O poente onde, há pouco, o sol ardia,se tingiu de cor de ouro, luminosa.Tons desmaiados de lilás e rosalistram o puro azul do firmamento– um poema de luz, neste momento.A sombra de mansinho vem caindoe o contorno das coisas, diluindo.Pesa um grande silêncio, enorme e mudo.Desce suavemente sobre tudo,uma bênção dulcíssima …

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Diálogo na sombra – Jacinta Passos

– Que dissestes, meu bem?– Esse gosto.Donde será que ele vem?Corpo mortal.Águas marinhas.Virá da morte ou do sal?Esses dois que moram no fundo e no fim.– De quem falas, amor, do mar ou de mim?– Jacinta Passos (1944), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945. Jacinta Passos Autor: Jacinta Passos

Eu serei poesia – Jacinta Passos

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.Quando eu não for mais um indivíduo,eu serei poesia.Quando nada mais existir entre mim e todos os seres,os seres mais humildes do universo,eu serei poesia.Meu nome não importa.Eu não serei eu, eu serei nós,serei poesia permanente,poesia sem fronteiras.– Jacinta Passos (1942), em parte I “Momentos …

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Incerteza – Jacinta Passos

Em meu olhar se espelhaa sombra interior de incerteza angustiante.E em minha alma floresce, como rosa vermelhadum vermelho gritante,como o clangor clarim,esta angústia que vive a vibrar dentro em mim.É a minha vida um longo e ansioso esperar,num amor que há de vir.Amor – prazer que é dor e sofrer que é gozar –Amor que …

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Manhã de sol – Jacinta Passos

Dia azul de Maio. Esplendeum sol de ouro no céu que além se estende. Prolongam-se vibrações do arrebolna clara luz desta manhã de sol.O céu ardente,dum azul luminoso e transparente,tem doçura infinita…Um rumor de asas pelo azul palpita,palpita pelo ar.É carícia sonora, a música do mar.O verde risonhodas árvores é lindo como um sonho.A brisa …

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Meu sonho – Jacinta Passos

O meu sonhomais risonhoé suave e pequeninoresumindo entretanto o meu destino.É de cor azul escuracomo o mar que longe choraÉ cor de infinito e de ânsiacor do céu, cor do mar, cor de distância.Tem a leve suavidadeda saudade,e a cantante doçurade um regato que murmura.Macio e encantadoré carícia de pluma e perfume de flor.O meu …

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O mar – Jacinta Passos

Múrmuro e lento,o mar ao longe se espraia.Geme e brame, ruge e clamao seu tormento,e, soluçando, vem morrer na praia.O mar imenso…Quando eu escuto o seu rumor soturno,fico a cismar.Pensono destino do mar– ser eterno cantor –cantar a sua dor de eterno insatisfeito,cantar o seu sonho infinito desfeito,cantar o mesmo canto que embaloua infância do …

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O rio – Jacinta Passos

Tantos rios como eu abriram leito de pedrase pranto. Um dia perguntávamos:– Dizei-me, curva, onde vou? casa trono rocha soisaqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigofio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva,falai. Água de revolta, espuma e ódio nos porosna garganta no útero, pranto de mulher, águade fel antigo, quem …

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Sangue Negro – Jacinta Passos

para Jorge Amado Terras curvas do Recôncavoonde adormece o oceano,no teu subsolo circulasangue negro cor da noite,da cor do preto africano,preto cujo sangue escravoregou o solo baiano.Terras curvas do Recôncavoonde adormece o oceano,de tuas veias abertasescorreo petróleo baiano,sangue negro do Brasil. Operário mestiço!tuas ásperas mãos – e tu não sabes disso –tuas mãos quando movem as …

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1935 – Jacinta Passos

Tenso como rede de nervospressentindo ah! novembrode esperança e precipício.Fruto peco.Novembro de sangue e de heróis.Grito de assombro morto na garganta,soluço seco dor sem nome. Ferido.De morte ferido. Como um animal ferido. Lutade entranhas e dentes. Natal.Sangue. Praia Vermelha.Sangue.Sangue. É quase um fioescorrendosangrentotenazpor dentro dos cárceres,nas ilhase nos corações que a esperança guardaram.– Jacinta Passos, …

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Catedral – Alphonsus de Guimaraens

Entre brumas, ao longe, surge a aurora.O hialino orvalho aos poucos se evapora,Agoniza o arrebol.A catedral ebúrnea do meu sonhoAparece, na paz do céu risonho,Toda branca de sol. E o sino canta em lúgubres responsos:“Pobre Alphonsus! Pobre Alphonsus!” O astro glorioso segue a eterna estrada.Uma áurea seta lhe cintila em cadaRefulgente raio de luz.A catedral …

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Razão de ser – Paulo Leminski

Escrevo. E pronto.Escrevo porque preciso,preciso porque estou tonto.Ninguém tem nada com isso.Escrevo porque amanhece,E as estrelas lá no céuLembram letras no papel,Quando o poema me anoitece.A aranha tece teias.O peixe beija e morde o que vê.Eu escrevo apenas.Tem que ter por quê? Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Poesia: – Paulo Leminski

“words set to music” (Dantevia Pound), “uma viagem aodesconhecido” (Maiakóvski), “cernese medulas” (Ezra Pound), “a fala doinfalável” (Goethe), “linguagemvoltada para a sua própriamaterialidade” (Jakobson),“permanente hesitação entre som esentido” (Paul Valery), “fundação doser mediante a palavra” (Heidegger),“a religião original da humanidade”(Novalis), “as melhores palavras namelhor ordem” (Coleridge), “emoçãorelembrada na tranquilidade”(Wordsworth), “ciência e paixão”(Alfred de Vigny), “se …

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Adminimistério – Paulo Leminski

Quando o mistério chegar,já vai me encontrar dormindo,metade dando pro sábado,outra metade, domingo.Não haja som nem silêncio,quando o mistério aumentar.Silêncio é coisa sem senso,não cesso de observar.Mistério, algo que, penso,mais tempo, menos lugar.Quando o mistério voltar,meu sono esteja tão solto,nem haja susto no mundoque possa me sustentar. Meia-noite, livro aberto.Mariposas e mosquitospousam no texto incerto.Seria …

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A lua no cinema – Paulo Leminski

A lua foi ao cinema,passava um filme engraçado,a história de uma estrelaque não tinha namorado. Não tinha porque era apenasuma estrela bem pequena,dessas que, quando apagam,ninguém vai dizer, que pena! Era uma estrela sozinha,ninguém olhava pra ela,e toda a luz que ela tinhacabia numa janela. A lua ficou tão tristecom aquela história de amorque até …

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Sem título – Paulo Leminski

Eu tão isóscelesVocê ânguloHipótesesSobre o meu tesão Teses síntesesAntítesesVê bem onde pisesPode ser meu coração Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Contranarciso – Paulo Leminski

em mimeu vejoo outroe outroenfim dezenastrens passandovagões cheios de gente centenas o outroque há em mim é vocêvocêe você assim comoeu estou em vocêeu estou neleem nóse só quandoestamos em nósestamos em pazmesmo que estejamos a sós Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Riso para Gil – Paulo Leminski

teu risoreflete no teu canto rima ricaraio de solem dente de ouro “everything is gonna be alright” teu risodiz simteu riso satisfaz enquanto o solque imita teu risonão sai Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Suprassumo da quintessência – Paulo Leminski

O papel é curto. Viver é comprido. Oculto ou ambíguo, tudo o que eu digo tem ultrassentido. Se rio de mim, me levem a sério. Ironia estéril? Vai nesse ínterim, meu inframistério. Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Coco de Pagu – Raul Bopp

Pagu tem os olhos moles uns olhos de fazer doer. Bate-côco quando passa. Coração pega a bater. Eh Pagu eh!Dói porque é bom de fazer doer. Passa e me puxa com os olhos provocantissimamente.Mexe-mexe bamboleiapra mexer com toda a gente. Eli Pagu eh!Dói porque é bom de fazer doer. Toda a gente fica olhando o seu corpinho de vai-e-vem umbilical e …

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Monjolo chorado do bate-pilão – Raul Bopp

Fazenda velha. Noite e diaBate-pilão. Negro passa a vida ouvindoBate-pilão. Relógio triste o da fazenda.Bate-pilão. Negro deita. Negro acorda.Bate-pilão. Quebra-se a tarde. Ave-Maria.Bate-pilão. Chega a noite. Toda a noiteBate-pilão. Quando há velório de negroBate-pilão. Negro levado pra covaBate-pilão. Raul Bopp Autor: Raul Bopp

Fábula de um arquiteto – João Cabral de Melo Neto

A arquitetura como construir portas,de abrir; ou como construir o aberto;construir, não como ilhar e prender,nem construir como fechar secretos;construir portas abertas, em portas;casas exclusivamente portas e tecto.O arquiteto: o que abre para o homem(tudo se sanearia desde casas abertas)portas por-onde, jamais portas-contra;por onde, livres: ar luz razão certa. Até que, tantos livres o amedrontando,renegou …

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A educação pela pedra – João Cabral de Melo Neto

Uma educação pela pedra: por lições;Para aprender da pedra, frequentá-la;Captar sua voz inenfática, impessoal(pela de dicção ela começa as aulas).A lição de moral, sua resistência friaAo que flui e a fluir, a ser maleada;A de poética, sua carnadura concreta;A de economia, seu adensar-se compacta:Lições da pedra (de fora para dentro,Cartilha muda), para quem soletrá-la. Outra …

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Psicologia da composição (trecho) – João Cabral de Melo Neto

Saio de meu poemacomo quem lava as mãos.Algumas conchas tornaram-se,que o sol da atençãocristalizou; alguma palavraque desabrochei, como a um pássaro.Talvez alguma conchadessas (ou pássaro) lembre,côncava, o corpo do gestoextinto que o ar já preencheu;talvez, como a camisavazia, que despi.Esta folha brancame proscreve o sonho,me incita ao versonítido e preciso.Eu me refugionesta praia puraonde nada …

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Dor elegante – Paulo Leminski

Um homem com uma dorÉ muito mais eleganteCaminha assim de ladoCom se chegando atrasadoChegasse mais adiante Carrega o peso da dorComo se portasse medalhasUma coroa, um milhão de dólaresOu coisa que os valha Ópios, édens, analgésicosNão me toquem nesse dorEla é tudo o que me sobraSofrer vai ser a minha última obra Paulo Leminski Autor: …

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O que quer dizer – Paulo Leminski

O que quer dizer diz.Não fica fazendoo que, um dia, eu sempre fiz.Não fica só querendo, querendo,coisa que eu nunca quis.O que quer dizer, diz.Só se dizendo num outroo que, um dia, se disse,um dia, vai ser feliz. Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

M. de memória – Paulo Leminski

Os livros sabem de cormilhares de poemas.Que memória!Lembrar, assim, vale a pena.Vale a pena o desperdício,Ulisses voltou de Tróia,assim como Dante disse,o céu não vale uma história.um dia, o diabo veioseduzir um doutor Fausto.Byron era verdadeiro.Fernando, pessoa, era falso.Mallarmé era tão pálido,mais parecia uma página.Rimbaud se mandou pra África,Hemingway de miragens.Os livros sabem de tudo.Já …

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Parada cardíaca – Paulo Leminski

Essa minha securaessa falta de sentimentonão tem ninguém que segure,vem de dentro.Vem da zona escuradonde vem o que sinto.Sinto muito,sentir é muito lento. Paulo Leminski Autor: Paulo Leminski

Desencanto – Manuel Bandeira

Eu faço versos como quem choraDe desalento… de desencanto…Fecha o meu livro, se por agoraNão tens motivo nenhum de pranto. Meu verso é sangue. Volúpia ardente…Tristeza esparsa… remorso vão…Dói-me nas veias. Amargo e quente,Cai, gota a gota, do coração. E nestes versos de angústia roucaAssim dos lábios a vida corre,Deixando um acre sabor na boca. …

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Bem no fundo – Paulo Leminski

No fundo, no fundo,bem lá no fundo,a gente gostariade ver nossos problemasresolvidos por decreto a partir desta data,aquela mágoa sem remédioé considerada nulae sobre ela — silêncio perpétuo extinto por lei todo o remorso,maldito seja quem olhar pra trás,lá pra trás não há nada,e nada mais mas problemas não se resolvem,problemas têm família grande,e aos …

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Mulher proletária – Jorge de Lima

Mulher proletária — única fábricaque o operário tem, (fabrica filhos)tuna tua superprodução de máquina humanaforneces anjos para o Senhor Jesus,forneces braços para o senhor burguês. Mulher proletária,o operário, teu proprietáriohá de ver, há de ver:a tua produção,a tua superprodução,ao contrário das máquinas burguesassalvar o teu proprietário. Jorge de Lima Autor: Jorge de Lima

A infância – Ariano Suassuna

Sem lei nem Rei, me vi arremessadobem menino a um Planalto pedregoso.Cambaleando, cego, ao Sol do Acaso,vi o mundo rugir. Tigre maldoso. O cantar do Sertão, Rifle apontado,vinha malhar seu Corpo furioso.Era o Canto demente, sufocado,rugido nos Caminhos sem repouso. E veio o Sonho: e foi despedaçado!E veio o Sangue: o marco iluminado,a luta extraviada …

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A estrada – Ariano Suassuna

No relógio do Céu, o Sol ponteiroSangra a Cabra no estranho céu chumboso.A Pedra lasca o Mundo impiedoso,A chama da Espingarda fere o Aceiro. No carrascal do sol, azul braseiro,Refulge o Girassol rubro e fogoso.Como morrer na sombra do meu Pouso?Como enfrentar as flechas desse Arqueiro? Lá fora, o incêndio: o roxo lampadáriodas Macambiras rubras …

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Lápide – Ariano Suassuna

Quando eu morrer, não soltem meu Cavalonas pedras do meu Pasto incendiado:fustiguem-lhe seu Dorso alardeado,com a Espora de ouro, até matá-lo. Um dos meus filhos deve cavalgá-lonuma Sela de couro esverdeado,que arraste pelo Chão pedroso e pardochapas de Cobre, sinos e badalos. Assim, com o Raio e o cobre percutido,tropel de cascos, sangue do Castanho,talvez …

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Cantigas – Jorge de Lima

As cantigas lavam a roupa das lavadeiras. As cantigas são tão bonitas, que as lavadeiras ficam tão tristes, tão                              pensativas! As cantigas tangem os bois dos boiadeiros! ¬ Os bois são morosos, a carga é tão grande! O caminho é tão comprido que não tem fim. As cantigas são leves … E as cantigas levam …

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Com licença poética – Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,desses que tocam trombeta, anunciou:vai carregar bandeira.Cargo muito pesado pra mulher,esta espécie ainda envergonhada.Aceito os subterfúgios que me cabem,sem precisar mentir.Não tão feia que não possa casar,acho o Rio de Janeiro uma beleza eora sim, ora não, creio em parto sem dor.Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, …

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Alfândega – Adélia Prado

O que pude oferecer sem mácula foimeu choro por beleza ou cansaço,um dente exraizado,o preconceito favorável a todas as formasdo barroco na música e o Rio de Janeiroque visitei uma vez e me deixou suspensa.‘Não serve’, disseram. E exigirama língua estrangeira que não aprendi,o registro do meu diploma extraviadono Ministério da Educação, mais taxa sobre …

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Momento – Adélia Prado

Enquanto eu fiquei alegre,permaneceram um bule azul com um descascado no bico,uma garrafa de pimenta pelo meio,um latido e um céu limpidíssimocom recém-feitas estrelas.Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,constituindo o mundo pra mim, anteparopara o que foi um acometimento:súbito é bom ter um corpo pra rire sacudir a cabeça. A vida é mais tempoalegre …

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A formalística – Adélia Prado

O poeta cerebral tomou café sem açúcare foi pro gabinete concentrar-se.Seu lápis é um bisturique ele afia na pedra,na pedra calcinada das palavras,imagem que elegeu porque ama a dificuldade,o efeito respeitoso que produzseu trato com o dicionário.Faz três horas que já estuma as musas.O dia arde. Seu prepúcio coça. Adélia Prado Autor: Adélia Prado

Fragmento – Adélia Prado

Bem-aventurado o que pressentiuquando a manhã começou:não vai ser diferente da noite.Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,o pensamento dividido entre deitar-se primeiroà esquerda ou à direitae mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,um vento bom entra nessa janela. Adélia Prado Autor: Adélia Prado

Casamento – Adélia Prado

Há mulheres que dizem:Meu marido, se quiser pescar, pesque,mas que limpe os peixes.Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,de vez em quando os cotovelos se esbarram,ele fala coisas como “este foi difícil”“prateou no ar dando rabanadas”e faz o gesto …

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Dona Doida – Adélia Prado

Uma vez, quando eu era menina, choveu grossocom trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.Quando se pôde abrir as janelas,as poças tremiam com os últimos pingos.Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.A …

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Um jeito – Adélia Prado

Meu amor é assim, sem nenhum pudor.Quando aperta eu grito da janela— ouve quem estiver passando —ô fulano, vem depressa.Tem urgência, medo de encanto quebrado,é duro como osso duro.Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:quero é dormir com você, alisar seu cabelo,espremer de suas costas as montanhas pequenininhasde matéria branca. Por hora dou …

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Janela – Adélia Prado

Janela, palavra linda.Janela é o bater das asas da borboleta amarela.Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,janela jeca, de azul.Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vio casamento da Anita esperando neném, a mãedo Pedro …

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Apanhador de desperdícios – Manoel de Barros

Uso a palavra para compor meus silêncios.Não gosto das palavrasfatigadas de informar.Dou mais respeitoàs que vivem de barriga no chãotipo água pedra sapo.Entendo bem o sotaque das águasDou respeito às coisas desimportantese aos seres desimportantes.Prezo insetos mais que aviões.Prezo a velocidadedas tartarugas mais que a dos mísseis.Tenho em mim um atraso de nascença.Eu fui aparelhadopara …

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Retrato do artista quando coisa – Manoel de Barros

A maior riquezado homemé sua incompletude.Nesse pontosou abastado.Palavras que me aceitamcomo sou— eu não aceito.Não aguento ser apenasum sujeito que abreportas, que puxaválvulas, que olha orelógio, que compra pãoàs 6 da tarde, que vailá fora, que aponta lápis,que vê a uva etc. etc.Perdoai. Mas eupreciso ser Outros.Eu pensorenovar o homemusando borboletas. Manoel de Barros Autor: …

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O fazedor de amanhecer – Manoel de Barros

Sou leso em tratagens com máquina.Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.Em toda a minha vida só engenhei3 máquinasComo sejam:Uma pequena manivela para pegar no sono.Um fazedor de amanhecerpara usamentos de poetasE um platinado de mandioca para ofordeco de meu irmão.Cheguei de ganhar um prêmio das indústriasautomobilísticas pelo Platinado de Mandioca.Fui aclamado de idiota pela maioriadas …

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Prefácio – Manoel de Barros

Assim é que elas foram feitas (todas as coisas) —sem nome.Depois é que veio a harpa e a fêmea em pé.Insetos errados de cor caíam no mar.A voz se estendeu na direção da boca.Caranguejos apertavam mangues.Vendo que havia na terraDependimentos demaisE tarefas muitas —Os homens começaram a roer unhas.Ficou certo pois nãoQue as moscas iriam …

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Aprendimentos – Manoel de Barros

O filósofo Kierkegaard me ensinou que culturaé o caminho que o homem percorre para se conhecer.Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fimfalou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisasdi-menor com a natureza. Aprendeu que as folhasdas árvores servem para nos ensinar a …

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O sonho – Clarice Lispector

Sonhe com aquilo que você quer ser,porque você possui apenas uma vidae nela só se tem uma chancede fazer aquilo que quer. Tenha felicidade bastante para fazê-la doce.Dificuldades para fazê-la forte.Tristeza para fazê-la humana.E esperança suficiente para fazê-la feliz. As pessoas mais felizes não tem as melhores coisas.Elas sabem fazer o melhor das oportunidadesque aparecem …

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O que é simpatia (a uma menina) – Casimiro de Abreu

Simpatia – é o sentimentoQue nasce num só momento,Sincero, no coração;São dois olhares acesosBem juntos, unidos, presosNuma mágica atração. Simpatia – são dois galhosBanhados de bons orvalhosNas mangueiras do jardim;Bem longe às vezes nascidos,Mas que se juntam crescidosE que se abraçam por fim. São duas almas bem gêmeasQue riem no mesmo riso,Que choram nos mesmos …

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Risos – Casimiro de Abreu

Ri, criança, a vida é curta, O sonho dura um instante. Depois… o cipreste esguio Mostra a cova ao viandante! A vida é triste – quem nega? – Nem vale a pena dize-lo . Deus a parte entre seus dedos Qual um fio de cabelo! Como o dia, a nossa vida Na aurora é – toda venturas, De tarde – doce tristeza. Casimiro de Abreu …

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Deus – Casimiro de Abreu

Eu me lembro! eu me lembro! – Era pequeno E brincava na praia; o mar bramia E, erguendo o dorso altivo, sacudia A branca escuma para o céu sereno. E eu disse a minha mãe nesse momento: “Que dura orquestra! Que furor insano! “Que pode haver maior do que o oceano, “Ou que seja mais forte do que o vento?!” – Minha mãe …

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Clara – Casimiro de Abreu

Não sabes, Clara, que penaEu teria se – morenaTu fosses em vez de clara!Talvez… Quem sabe?… não digo…Mas refletindo comigoTalvez nem tanto te amara! A tua cor é mimosa, Brilha mais da face a rosa,Tem mais graça a boca breve.O teu sorriso é delírio…És alva da cor do lírio,És clara da cor da neve! A morena …

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Um história – Casimiro de Abreu

A brisa dizia à rosa:– “Dá, formosa,Dá-me, linda, o teu amor;Deixa eu dormir no teu seioSem receio,Sem receio minha flor! Da tarde virei da selvaSobre a relvaOs meus suspiros te dar;E de noite na correnteMansamenteMansamente te embalar!” – E a rosa dizia à brisa:– “Não precisaMeu seio dos beijos teus;Não te adoro… és inconstante…Outro amante,Outro …

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Saudades – Casimiro de Abreu

Nas horas mortas da noiteComo é doce o meditarQuando as estrelas cintilamNas ondas quietas do mar;Quando a lua majestosaSurgindo linda e formosa,Como donzela vaidosaNas águas se vai mirar! Nessas horas de silêncio,De tristezas e de amor,Eu gosto de ouvir ao longe,Cheio de mágoa e de dor,O sino do campanárioQue fala tão solitárioCom esse som mortuárioQue …

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Sonhando – Casimiro de Abreu

Um dia, oh linda, embaladaAo canto do gondoleiro,Adormeceste inocenteNo teu delírio primeiro,– Por leito o berço das ondas,Meu colo por travesseiro! Eu, pensativo, cismavaNalgum remoto desgosto,Avivado na tristezaQue a tarde tem, ao sol-posto,E ora mirava as nuvens,Ora fitava teu rosto. Sonhavas então, querida,E presa de vago anseioDebaixo das roupas brancasSenti bater o teu seio,E meu …

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Moreninha – Casimiro de Abreu

Moreninha, Moreninha,Tu és do campo a rainha,Tu és senhora de mim;Tu matas todos d’amores,Faceira, vendendo as floresQue colhes no teu jardim. Quando tu passas n’aldeiaDiz o povo à boca cheia:– “Mulher mais linda não há“Ai! vejam como é bonita“Co’as tranças presas na fita,“Co’as flores no samburá! – Tu és meiga, és inocenteComo a rola que …

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Segredos – Casimiro de Abreu

Eu tenho uns amores – quem é que os não tinhaNos tempos antigos? – Amar não faz mal;As almas que sentem paixão como a minhaQue digam, que falem em regra geral.– A flor dos meus sonhos é moça e bonitaQual flor entreaberta do dia ao raiar,Mas onde ela mora, que casa ela habita,Não quero, não …

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Já era tempo

Já era tempo de você voltarMe beijar, esquecerJá era mais que tempo de vocêRefletirQue as palavras muitas vezesNão provém do coraçãoDo coraçãoJá fazem meses que você, meu bemDisse adeus, partiuJá era tempo de você chegarComo euCom olhos rasos d’águaMas sem mágoaTriste de quem tem e vive à toaTriste de quem ama e não perdoaAi de …

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Matinal – Mário Quintana

O tigre da manhã espreita pelas venezianas.O Vento fareja tudo.Nos cais, os guindastes domesticados dinossauros – erguem a carga do dia. Mário Quintana Autor: Mário Quintana

O pobre poema – Mário Quintana

Eu escrevi um poema horrível!É claro que ele queria dizer alguma coisa…Mas o quê?Estaria engasgado?Nas suas meias-palavras havia no entanto uma ternura mansa como a que se vê nos olhos de uma criança doente, uma precoce, incompreensível gravidadede quem, sem ler os jornais,soubesse dos seqüestrosdos que morrem sem culpados que se desviam porque todos os …

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O tempo – Mário Quintana

A vida é uns deveres que nós trouxemos para fazer em casa. Quando se vê, já são 6 horas: há tempo…Quando se vê, já é 6ª-feira…Quando se vê, passaram 60 anos!Agora, é tarde demais para ser reprovado…E se me dessem – um dia – uma outra oportunidade,eu nem olhava o relógioseguia sempre em frente… E …

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Os poemas – Mário Quintana

Os poemas são pássaros que chegamnão se sabe de onde e pousamno livro que lês. Quando fechas o livro, eles alçam voocomo de um alçapão.Eles não têm pousonem portoalimentam-se um instante em cada par de mãose partem. E olhas, então, essas tuas mãos vazias,no maravilhado espanto de saberesque o alimento deles já estava em ti… …

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Presença – Mário Quintana

É preciso que a saudade desenhe tuas linhas perfeitas,teu perfil exato e que, apenas, levemente, o ventodas horas ponha um frêmito em teus cabelos…É preciso que a tua ausência trescalesutilmente, no ar, a trevo machucado,as folhas de alecrim desde há muito guardadasnão se sabe por quem nalgum móvel antigo…Mas é preciso, também, que seja como …

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Relógio – Mário Quintana

O mais feroz dos animais domésticosé o relógio de parede:conheço um que já devoroutrês gerações da minha família. Mário Quintana Autor: Mário Quintana

Erro – Machado de Assis

Erro é teu. Amei-te um diaCom esse amor passageiroQue nasce na fantasiaE não chega ao coração;Não foi amor, foi apenasUma ligeira impressão;Um querer indiferente,Em tua presença, vivo,Morto, se estavas ausente,E se ora me vês esquivo,Se, como outrora, não vêsMeus incensos de poetaIr eu queimar a teus pés,É que, — como obra de um dia,Passou-me essa …

Erro – Machado de Assis Leia mais »

No alto – Machado de Assis

O poeta chegara ao alto da montanha,E quando ia a descer a vertente do oeste,Viu uma cousa estranha,Uma figura má.Então, volvendo o olhar ao subtil, ao celeste,Ao gracioso Ariel, que de baixo o acompanha,Num tom medroso e agrestePergunta o que será.Como se perde no ar um som festivo e doce,Ou bem como se fosseUm pensamento …

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Quando ela fala – Machado de Assis

Quando ela fala, pareceQue a voz da brisa se cala;Talvez um anjo emudeceQuando ela fala. Meu coração doloridoAs suas mágoas exala,E volta ao gozo perdidoQuando ela fala. Pudesse eu eternamente,Ao lado dela, escutá-la,Ouvir sua alma inocenteQuando ela fala. Minha alma, já semimorta,Conseguira ao céu alçá-laPorque o céu abre uma portaQuando ela fala. Machado de Assis …

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Relíquia íntima – Machado de Assis

Ilustríssimo, caro e velho amigo, Na quinta-feira, nove do corrente,Preciso muito de falar contigo. E aproveitando o portador te digo,Que nessa ocasião terás presente,A esperada gravura de patenteEm que o Dante regressa do Inimigo. Manda-me pois dizer pelo bombeiroSe às três e meia te acharás postadoJunto à porta do Garnier livreiro: Senão, escolhe outro lugar …

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Soneto de Natal – Machado de Assis

Um homem, — era aquela noite amiga,Noite cristã, berço do Nazareno, —Ao relembrar os dias de pequeno,E a viva dança, e a lépida cantiga, Quis transportar ao verso doce e amenoAs sensações da sua idade antiga,Naquela mesma velha noite amiga,Noite cristã, berço do Nazareno. Escolheu o soneto . . . A folha brancaPede-lhe a inspiração; …

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Stella – Machado de Assis

Já raro e mais escassoA noite arrasta o manto,E verte o último prantoPor todo o vasto espaço. Tíbio clarão já coraA tela do horizonte,E já de sobre o monteVem debruçar-se a aurora À muda e torva irmã,Dormida de cansaço,Lá vem tomar o espaçoA virgem da manhã. Uma por uma, vãoAs pálidas estrelas,E vão, e vão …

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Bilhete – Mário Quintana

Se tu me amas, ama-me baixinhoNão o grites de cima dos telhadosDeixa em paz os passarinhosDeixa em paz a mim!Se me queres,enfim,tem de ser bem devagarinho, Amada,que a vida é breve, e o amor mais breve ainda… Mário Quintana Autor: Mário Quintana

Emergência – Mário Quintana

Quem faz um poema abre uma janela. Respira, tu que estás numa cela abafada, esse ar que entra por ela. Por isso é que os poemas têm ritmo — para que possas profundamente respirar. Quem faz um poema salva um afogado. Mário Quintana Autor: Mário Quintana

Esperança – Mário Quintana

Lá bem no alto do décimo segundo andar do AnoVive uma louca chamada EsperançaE ela pensa que quando todas as sirenasTodas as buzinasTodos os reco-recos tocaremAtira-seE — ó delicioso voo!Ela será encontrada miraculosamente incólume na calçada,Outra vez criança…E em torno dela indagará o povo:— Como é teu nome, meninazinha de olhos verdes?E ela lhes dirá(É …

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