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Pedra no cachimbo – Miriam Alves

A pedra quando chega acerta
acerta bem no meio dos meus sonhos
bem nos olhos da esperança
e cega
a pedra quando chega
é fumaça em cachimbos improvisados
é cinco segundos de noia eufórica

 fúria em descontrole
A pedra quando chega é demo-crática
acerta brancos negros pobre e ricos

 Mas os poderes públicos só se sensibilizam
quando a pedra no cachimbo acerta
a vidraça das coberturas dos jardins
à beira-mar
E ameaça transbordar
somando todas as lágrimas de verdes olhos
aos das piscinas de sonhos
senhoriais.

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Saber da chama – Miriam Alves

Beber nesta chama
que esgueira silenciosa
tensa e dúbia
afogueando a garganta
aquecendo o berro
         o grito
Beber esta chama
sorvê-la
num só trago
senti-la derretendo
barreiras

Saber da chama
do caudal
da lava
da lama
vazando ardente
numa gota de palavra
pendurada num canto da boca
prometendo o encontro
na encruzilhada do amanhã.

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Mnu – Miriam Alves

Eu sei:
“havia uma faca
         atravessando os olhos gordos
                em esperanças
havia um ferro em brasa
         tostando as costas
         retendo as lutas
havia mordaças pesadas
         esparadrapando as ordens
               das palavras”
Eu sei:
    Surgiu um grito na multidão
        Um estalo seco de revolta 
      Surgiu outro
           outro
                e
              outros
         aos poucos, amotinamos exigências
querendo o resgate
sobre nossa forçada
      miséria secular. 
– Miriam Alves, em “Cadernos Negros: os melhores poemas”. São Paulo: Quilombhoje; Fundo Nacional da Cultura| Ministério da Cultura, 1998, p. 105.

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


O verso orou – Miriam Alves

calei o verbo dor e o verso amor
metáforas profundas não vieram
emoldurei-me no silêncio
Na cara da lua mais tarde
explodiu
gozo
debochado
plenitude temporária
O poema inscreveu-se
Entrelinhas negritou metáfora
Orou
Desenhou palavras fortes nos espaços em branco 

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Parto – Miriam Alves

Uma batida surda
dói ouvir
Viver viver
presa na gaiola
pássara
Já vi o infinito
fui constelação
Agora asteroide vagando
estrela cadente
dividi-me em duas
Dividida para não ser subtraída
fiquei inteira amolgada em cada pedaço
chorei porque eu nascia
– Miriam Alves, em “Cadernos Negros”. n. 25, São Paulo: Quilombhoje, 2002.

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Calafrio – Miriam Alves

O sorriso gela
a porta do paraíso prometido

A tarde cobre-se de frio
grita
esconde-se atrás dos
casacos
faz esculpir aquela saudade
do lugar
jamais percorrido.

Escorrem feito sorvete
as esperanças derretidas
no ardor do querer.

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Colar – Miriam Alves

Colecionava amizades
Pendura corrente de sorrisos estáticos

No pescoço
Ostentava tantos e tantos
Sorrisos-dentaduras
Polia-os à noite com gotas de lágrimas
Retidas
Um dia o colar mordeu-lhe a jugular 
Jorrou-lhe rios de ausências

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Enigma – Miriam Alves

Tento decifrar-me

mergulho-me

calo

acalento calores

dilacerados


Mergulho em você

avolumo prazeres solitários

broto emoções explícitas

em lugares bem guardados

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Fumaça – Miriam Alves

Estou a toque de máquina

corro, louca, voo, suo

a fumaça sou eu

Estou a toque de nada

vivo, ando

como a comida envenenada

e o comido sou eu

estou a toque de selva

os ferros torcidos, sacudidos

dentro de uma marmita

e a marmita sou eu

Nego, mas vivo dizendo

Sim

a tudo que me dói na cabeça

e o doido sou eu

Paro, mas estou sempre correndo

doem as pernas, os pés

e este corpo é o meu

Amanhã me encontra acordada

como a noite deixou

e o insone sou eu

Indago, mas não estou escutando

a pergunta anda solta

e ninguém explicou

que a resposta sou eu

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Gotas – Miriam Alves

Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
a chuva e o vento
purificam a terra
Mesmo que eu não saiba falar a língua
dos anjos e dos homens
Orixás iluminam e refletem-me
derramando
gotas
iluminadas de Axé no meu Ori

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Guardiãs – Miriam Alves

Esconderei meu sofrimento
nas entranhas do vento
guardarei as lágrimas
no pote das nuvens
reavaliarei as intenções
   da natureza
Farei das montanhas
guardiãs de meus segredos

Escreverei com um corisco
o fogo das emoções
as verdades de hoje
para não serem

segredos de amanhã.

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Insone ouço vozes – Miriam Alves

Calor afogueia
os pensamentos de espera. Quando
embalo na cama da noite
insônia de séculos.

Ouço ruídos de tambores
sobressaltos alimentam
meus pés

Nos pensamentos de esperança
embalo na cama da noite
as dores de meu tempo

Ouço vozes
emanadas dos exércitos humanos
contidos.

Na cama da noite
movimento minhas mãos
embalo medos, espanto-me
diante do conhecido

Nos pensamentos de espera
solto minha rouca voz:
bala de chumbo

Nos pensamentos de esperanças
espreito de olhos baços
arregalados na insônia de aguardar
a hora de entrar em ação. 

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves


Mahin manhã – Miriam Alves

Ouve-se nos cantos a conspiração
vozes baixas sussurram frases precisas
escorre nos becos a lâmina das adagas
Multidão tropeça nas pedras
                  Revolta
há revoada de pássaros
      sussurro, sussurro:
 “é amanhã, é amanhã.
     Mahin falou, é amanha”
A cidade toda se prepara
        Malês
            Bantus
                geges
                   nagôs
vestes coloridas resguardam esperanças
             aguardam a luta
Arma-se a grande derrubada branca
a luta é tramada na língua dos Orixás
 é aminhã, aminhã”
sussuram
         Malês
            Bantus
                geges
                   nagôs
      “é aminhã, Luiza Mahin falô”  

Miriam Alves

Autor: Miriam Alves