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Vozes da noite – Júlia Cortines

Pesa a calma da noite em derredor.

Um choro Brando às súbitas soa

No silêncio, que após um tumultuoso coro

De soluços e de ais e de gritos povoa:

– Vão e eterno clamor da humana criatura,

Presa da desventura.

Quanta dor a gemer nessa orquestra assombrosa!

Revoltado e dorido,

Vibra o grito de alguém, numa selva cheirosa

Pelo ascoso réptil da perfídia mordido;

De alguém, franco e viril, que a luta não abate,

Vencido sem combate.

Ouço o rouco estertor do soldado, que, exangue,

Após a árdua refrega,

Agoniza num solo embebido de sangue,

Enquanto ao seu olhar, que às ilusões se apega,

Se transmuda o fulgor da sagrada bandeira

Numa sombra embusteira…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Via dolorosa – Júlia Cortines

Alma, galgando vais o teu Calvário abrupto,
Em farrapos, em sangue, em lágrimas, em luto,
Por fragas arrastando, em convulsões de dor,
O lenho, que te verga ao peso esmagador.
Ruge em torno de ti a tempestade; o açoite
Do vento dilacera a cortina da noite.
Como um túrbido mar, roto pelo escarcéu,
Vês na altura rolar o proceloso céu,
E em baixo, à proporção que no espaço te elevas
Subir, rente a teus pés, um dilúvio de trevas,
Que a esperança afogou, e afogará até
A dor no turbilhão da crescente maré…
Mais um passo, e verás desse abrupto Calvário
No tope, em que branqueja um anônimo ossário,
Entre o olvido e o silêncio, o madeiro se erguer,
Onde vais, para sempre, exânime, pender…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Dor eterna – Júlia Cortines

O tempo – dizem – apaga
O prazer e o sofrimento
Sobre eles rolando a vaga
Sombria do esquecimento.
E transforma encantadores
Sítios, que tu, Abril, vestes
De uma gaze de esplendores,
Em sítios feios e agrestes.
E faz germinar nas águas,
Que bebe a gandra bravia,
O lírio, como das mágoas
Brota a flor da alegria.
E, no entretanto, contemplo,
Extática e dolorosa,
Entre os escombros de um templo
Desmoronado, caída
A ara ebúrnea, de que há tanto
Despenhou-se a idolatrada
Imagem, que vejo, em pranto,
De lodo vil salpicada…
Por isso, pungida à aguda
Pena, que o olvido não calma,
Diz à revolta, sanhuda
Onda do tempo a minha alma:
“– Rola túmida ou desfeita.
Que importa? – Como os granitos,
Conservo, pedaços feita,
Os caracteres inscritos.”

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


IV – Júlia Cortines

Com triste olhar seguindo
Os pássaros, que em bando
Lá voam para o azul da montanha fronteira
Envolta na doirada e lúcida poeira,
Que foge, à proporção que o sol vai recuando
E a sombra vai subindo;

Penso no amor infindo
Que me prendeu ao brando
Raio do teu olhar; e minha alma de poeta
Deixa a sombra que a cerca, e voa, ansiosa e inquieta,
A buscar essa luz… E a luz vai recuando…

E a sombra vai subindo…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


V – Júlia Cortines

Do mês de Maio a luz do sol mais brando
Desce do espaço em leves frocos de ouro,
E, pelos frios ares ondulando,
Envolve a mata e espelha o sorvedouro.
Se enrola o raio aveludado e louro
Pelos ramos, aos quais, se aproximando
As horas do crepúsculo, cantando
Voltam as aves em alegre coro.
Mas nem sequer eu na janela assomo.
Só vejo a natureza morta, como
Uma sombria e desolada estepe.
É que longe de mim está: sem vê-lo,
Trago a minha alma sepultada em gelo,
Trago o meu coração envolto em crepe.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


VIII – Júlia Cortines

Como é doce seguir o teu rastro, ó saudade,
Se equilibras no azul, à branda claridade
De um sonhado luar, as tuas asas mansas
Doiradas pela luz das nossas esperanças,
E levas para longe o teu voo, a um passado
De sorrisos e amor e sonhos estrelado,
Onde vemos alguém, que sobre nós derrama
Do seu profundo olhar a cariciosa chama,
Fazendo rebentar das nossas fundas dores
Da crença e da alegria as perfumosas flores;
Olhar que tem do sol o claro brilho intenso,
E faz cismar no azul, no grandioso e imenso…
Olhar que dentro em nós as emoções acorda,
E faz vibrar do amor a sonorosa corda.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Indiferente – Júlia Cortines

E vão assim as horas! – Vão fugindo
Um após outro os dias voadores,
Ao túmulo do olvido conduzindo
As alegrias como os dissabores,
O sonho agita as asas multicores,
E vai-se e vai-se rápido sumindo,
Enquanto a vaga quérula das dores
Soluça, e rola pelo espaço infindo…
A mim, porém a mim, a mim que importa,
A mim, cuja esperança há muito é morta,
Que o tempo, como um rio que se escoa,
Nos arrebate as ilusões que temos?!
– Deixo em descanso os fatigados remos,
E que o barco da vida boie à toa.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Finis – Júlia Cortines

Ouço um surdo, abafado e discorde ruído, Logo após um fragor que pelos ares trona. Qual se dum terremoto o solo sacudido Fosse, em torno de mim tudo se desmorona.

O que é feito de vós, altivos monumentos, Que afrontáveis do tempo os inúteis furores, Mergulhando no azul dos largos firmamentos, Mergulhando dos céus nos vivos resplendores?!

A asa aberta do sonho, em convulsa ansiedade, O abrigo busca em vão, que se lhe oferecia Outrora, se a lufada aguda da verdade Bruscamente a seu lado as asas distendia.

O mundo está deserto e a natureza morta! E é debalde que estendo avidamente os braços: Tudo aquilo que nos alimenta e conforta Abateu, e rolou pelo solo em pedaços…

E nunca brotará dessa informe ruína, Clara, a fonte de fé, que se desliza mansa, Nem a flor brotará da quimera divina, Nem a palma sonora e verde da esperança!

De súbito calou-se a voz imperiosa Que me incitava à luta e me dizia: – “Avante! Após a negridão da noite procelosa É que o dia é mais claro e o sol é mais brilhante!”

O alvo, que resumiu para mim o universo, O alvo, a que convergia a minha vida inteira, Se desfez, e voou pelos ares, disperso Em átomos de areia, e de cinza, e poeira.

E, em derredor, a muda amplitude dum ermo Exâmine se abriu sob um céu de granito… E nada em baixo, à flor da planície sem termo, E nada em cima, à flor do horizonte infinito..

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Soledade – Júlia Cortines

Poeta, dentro de ti, desmesurado e arcano,
Ou se cava, ou se empola, ou se espedaça o oceano
De tua alma, que exala um contínuo clamor,
– Brados de imprecações e soluços de dor!
Nele canta e suspira a lânguida sereia
Do Amor; a Mágoa geme; a Cólera estrondeia;
E a essas vozes se prende a dolorida voz
Da Saudade, chorando o que ficou após…
E em torno desse mar, que ulula, e chora, e guaia,
E que o vento revolve e a aresta dos escolhos
Rasga, do mundo vês a indiferente praia…
E acima dele vês a abóbada infinita
Do céu plácido e azul, onde o esplendor dos olhos
Das estrelas, sereno e distante, palpita…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Por toda parte – Júlia Cortines

Interrogaste a vida: interrogaste o arcano,

Misterioso sentir do coração humano;

A mesta palidez serena do luar;

O murmúrio plangente e soturno do mar;

O réptil, que rasteja; o pássaro, que voa;

A fera, cujo berro as solidões atroa;

A desenfreada fúria insana do tufão;

A planta a se estorcer numa atroz convulsão.

Interrogaste, enfim, tudo o que existe, tudo:

O que chora, o que vibra, o que é imoto, o que é mudo.

Do astro eterno baixaste à transitória flor.

Que encontraste, afinal?

– A dor! a dor! a dor!

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


O infinito – Júlia Cortines

(G. LEOPARDI)
AO DR. ESPERIDIÃO ELOY FILHO.

Sempre caro me foi este ermo cole,
Mais esta sebe, que de tanta parte
O longínquo horizonte à vista oculta.
Mas, se me assento, contemplando-a, espaços
Intérminos além, e sobre-humano
Silêncio, e profundíssima quietude
Meu pensamento fantasia; e quase
Se me apavora o coração. Se o vento
Ouço fremir nas árvores, aquele
Infinito silêncio a este murmúrio
Vou comparando: e lembro-me do eterno,
Das extintas idades, da presente
E viva e rumorosa. E em meio dessa
Imensidão afogo o pensamento,
E em suas ondas naufragar me é doce.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Sinal na fonte – Júlia Cortines

(ADA NEGRI)
Uma estrangeira, em púrpuras e gala,
Tocou-me a fronte com um dedo, e riu-se.

Um frêmito me abala.
E disse-me: “Um sinal tu tens na fronte,
Talhado em forma de uma cruz bizarra.
Tens um sinal na fronte.
Dos anos teus no afortunado giro
Sempre o trarás contigo – pois abriu-o
A boca d’um vampiro,
Que da tua existência a melhor parte
Ávido suga, e o fogo às tuas veias,
E tem o nome de Arte.
Quantas vezes o viste, ó quantas, quando
Velavas solitária, à cabeceira,
Famélico, te olhando!…
Foi o reino de Apolo a ti prescrito;
Mas neste séc’lo vendilhão e bárbaro
O talento é delito.
Vibrações 113
Sus, desnuda no verso prepotente

As vivas chagas de teu peito; em face
Há de te rir a gente.
Rica de juventude sã, doirada,
Vibra um hino de amor; e hão de chamar-te
De doida e deslocada.
Reis e censores, com insultos crassos,
Seguir-te-ão, como o lobo segue a prea
P’ra comê-la a pedaços.
E extinguir o sinal embalde vais;
Embalde: a luz da ideia não se extingue
Jamais, jamais, jamais!…”


Disse. E, proterva, em trajo purpurino,
Ergue-se em frente a mim, tal como o fado.
E eu a cabeça inclino.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


A um cadáver – Júlia Cortines

Eis-te, enfim, a dormir o teu sono de morte:
Semicerrado o olhar, as pupilas serenas,
Na atitude de quem nada teme da sorte,
Deslembrado do amor e esquecido das penas.
Nada pode turbar-te em teu repouso: estala
O raio, a lacerar das nuvens os vestidos;
No espaço a luz se extingue, o estampido se cala,
Sem vir ferir-te o olhar ou ferir-te os ouvidos.
Livre, afinal, da vida a que estava sujeito,
Teu calmo coração nenhum afeto encerra,
E, em pouco, como tu, ele estará desfeito
Sob o espesso lençol da camada de terra…
A afeição, que, fiel, te acompanhava, deve
Ficar, a pouco e pouco, à tua ausência alheia.
Passaste; e o esquecimento há de apagar, em breve,
O sinal que o teu passo imprimiu sobre a areia…
Que importa? Estás dormindo o teu sono de morte:
Semicerrado o olhar, as pupilas serenas,
Na atitude de quem nada teme da sorte,

Deslembrado do amor e esquecido das penas.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Alma solitária – Júlia Cortines

O que sentias era o que ninguém sentia:– O ódio, o amor, a saudade, a revolta tremenda.Não há ninguém que te ame e te console e entenda.Ninguém compartilhou tua funda agonia.
A alma que possuir acreditaste, um dia,Indiferente, vai a trilhar outra senda.Do infinito deserto ergueste a tua tendaEm meio à solidão da paisagem vazia…
E ora num voo audaz, ora num voo incerto,Entre o fogo do céu e a areia do deserto,A asa da aspiração finalmente cansou…
Mas a tua ansiedade e a tua angústia acalma.– Sobre o abismo cavado entre as almas, ó alma,Ninguém, para transpô-lo, uma ponte lançou.

– Júlia Cortines, em “Vibrações”. Rio de Janeiro: Laemmert & C. – Editores, 1905.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


À beira do abismo – Júlia Cortines

Morta, enfim, a esperança e desfeita a quimera, Tu chegaste da vida ao cimo da montanha, Onde, no calmo horror da solidão que impera,

Nada mais te acompanha.

Nada mais, a não ser o encarniçado apego À existência ante a lei implacável da sorte, Que a teus pés abre agora o inevitável pego

Misterioso da morte.

Que há, porém, nessa crua e falaz existência, Que tu possas querer, infeliz criatura, Tu que dela provaste a bárbara inclemência

E a infinita amargura?

Tu que viste rolar pelo solo os escombros De tudo o que nasceu para morrer num dia, E a Natureza-Mãe surda à voz dos assombros,

Surda à voz da agonia;

E o Deus bom, o Deus justo, o Deus onipotente, Que a distância, no espaço, a sua face oculta, Insensível à fé, que exora, e indiferente

À blasfêmia, que insulta;E o lugar de um poder a outro poder ser dado: A lei substituir o capricho divino, E o Homem sempre através das idades levado

Pela mão do Destino?!

Abandona-te, pois. Transpõe o curto espaço Que te separa então do final paroxismo, P’ra da morte cair, dado o intrépido passo,

No silencioso abismo,

Onde vai se extinguir o que a carne padece Desde o primeiro choro ao último gemido, E onde a ideia e a paixão, tudo desaparece

Sob as ondas do olvido..

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Eternidade – Júlia Cortines

Eternidade d’alma! ilusória miragem,

Que a alma busca através da crença e do terror,

A idear uma calma ou sombria paragem

De infinito prazer ou de infinita dor!
Por que há de haver além, noutro mundo distante,

Um prêmio eterno para a virtude mortal?

E para o ser que vive apenas um instante

Por que há de ser eterno o castigo do mal?
Que outros pensem que um dia a efêmera ventura

Eterna possa ser, e o efêmero pesar.

Que outros pensem que irão na constelada altura,

Co’outra forma e outra essência, a vida renovar…
À minha alma debalde essa ilusão convida.

Sem crença e sem terror, é-lhe grato saber

Que por destino tem, sobre as ondas da vida,

Um instante boiar, e desaparecer…

– Júlia Cortines, em “Vibrações”. Rio de Janeiro: Laemmert & C. – Editores, 1905.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Sonhadores – Júlia Cortines

Almas – da natureza a execrada exceção –

Em que o Sonho ateou seu nefasto clarão,

Vós que, presas à terra, a asa do pensamento

Sentis sempre a voar, em livre movimento,

Para o distante azul dos mundos ideais,

Onde o bem que buscais não existiu jamais;

Vós que abris, procurando o mistério das coisas,

Ou do futuro os véus, ou do passado as lousas,

Vendo bem quanto é vão o que hoje se ergue, e só

Se ergueu para amanhã se desfazer em pó;

Vós, a quem acenou a dolosa esperança

Co’a ventura que atrai e que nunca se alcança,

E que, em sede, ao roçar pela fonte do amor

O lábio, a água sorveis do pântano da dor;

Vós todas pela terra arrastastes os dias,

Deixando após, no chão, um rastro de agonias,

E fazendo vibrar, no espaço, em torno a nós,

A vossa revoltada ou suplicante voz,

Que ora em murmúrios geme, ora em blasfêmias grita

Da vida que heis vivido a miséria infinita!

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Anfitrite – Júlia Cortines

(Sobre uma página de Fénelon)

Tinta a escama de azul e de oiro, solevando
Em seus brincos a vaga espúmea, pelo bando
Dos alegres tritões, que os búzios retorcidos
Sopram, enchendo o ar de músicos ruídos,
Acompanhados, vão os ligeiros golfinhos
Seguindo de Anfitrite o carro, que marinhos
Corcéis, – que têm na cor cetinosa do pelo
A brancura da neve e o polido do gelo,
O olhar esbraseado, a boca fumegante, –
Levam, abrindo a onda, em rota triunfante,
Deixando após, no mar tranquilo e bonançoso,
Como um rastro de luz, um sulco luminoso…

A concha de marfim, de admirável feitura,
Em que se assenta a deusa, esplêndida fulgura,
E parece voar, com as rodas doiradas,
À superfície azul das ondas acalmadas,
Seguida de um tropel de ninfas, a que o vento
Desenrola na espalda o cabelo opulento.
Ela tem a serena e fria majestade
Que afrouxa o vendaval e afrouxa a tempestade.
E, enquanto, com uma mão, empunha o cetro de oiro,

Co’a outra, sobre o joelho ampara o filho, o loiro
E tenro Palemon, de seu seio pendente.
Como um pálio, no azul se destaca, fremente,
A púrpura de um véu, que sobre o carro esplende,
E que o brando soprar dos zéfiros suspende.
Vê-se Éolo no ar, com o aspecto severo,
O semblante enrugado, o olhar sombrio e austero,
Retendo os aquilões, e rápido afastando
Para longe de si as nuvens… Transformando
A lisura do mar em prainos ondeantes
Ao crebro palpitar das narinas aflantes,
Emergem prontamente os monstros da voragem,
Para verem da deusa a brilhante passagem.
– Júlia Cortines (1887), em “Versos”. Rio de Janeiro: Typ. Leuzinger, 1894.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Nostalgia selvagem – Júlia Cortines

Longe, longe, a uma grande, infinita distância,
Que não me será dado afrontar nunca mais,
Fica a terra onde vi deslizar minha infância:
Tal, sob um bosque em flor e um ar todo fragrância,
Um arroio a correr através dos juncais.
Vejo ainda essa pátria adorada e formosa:
– Densa e verde, a floresta infinda se estender
Por sob um céu azul, broslado de oiro e rosa,
E a cachoeira, como uma serpe raivosa,
Pelos flancos da serra, em convulsões, descer…
Pátria onde vive e luta uma raça valente,
Que a morte encara sem os olhos abaixar,
Que sabe opor o peito à força da corrente,
Vencer o tigre, a flecha atirar destramente,
E na mão do inimigo o tacape quebrar.
Vejo agora, – ó visão de sonhos tentadores! –
Da fronte a cabeleira a escorregar-lhe aos pés,
Tendo na brônzea pele o perfume das flores,
Ágil, esvelta e linda, a virgem dos amores,
Seminua, passar das ramas através…
Asas! Ave que vais para longe, eu quisera
Asas para transpor, como tu, a amplidão!
De um país onde fulge, eterna, a primavera,
Longe o amor me sorri e a luta chama e espera.
Asas! para fazer voar meu coração!

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Em vão – Júlia Cortines

É a ilusão, bem vejo: em tua fronte Inda fulge um resplendor de aurora. Tens o mesmo sorriso com que outrora Deliciavas a minha alma insonte.

Debalde apontas para além do monte Prainos que a ardência do verão enflora; Asas vibrando pelos céus em fora, Céus sem nuvens, sem raias o horizonte…

Esta grandiosa e esplêndida paisagem Desenrolada a meu olhar – miragem De intensidade e luz – que importa a uma alma

Que só deseja, antes da noite escura, Haurir da tarde um pouco de frescura, Gozar um pouco do silêncio e calma?!

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Dies iræ – Júlia Cortines

A esse som de trombeta e de alarma, quem há de Dormir?

Mortos, deixai a paz da sepultura

E acorrei: o que ouvis é o clarim da Saudade!

De pé! de pé! de pé!

Despedaçai a dura Lousa que sobre vós lançou o esquecimento,

Espectros do sofrer, fantasmas da ventura!

Ó divina ilusão, que um único momento

O fulgor da tua asa ante os meus olhos passe,

Deixando-os num enlevo e num deslumbramento!

Meu amor, meu amor, anima-te! renasce

Da cova em que a traição te sepultou um dia,

E une ainda uma vez a face à minha face!

Como o meu coração, em ânsias, se estorcia

Às tuas rudes mãos, fá-lo estorcer-se agora,

Minha lenta e penosa e tremenda agonia!

Todas vós que a minha alma agitastes outrora,

Ó esperança, ó alegria, ó tristeza, ó ansiedade,

Acudi a essa voz que, vibrante e sonora,

Faz rolar pelo espaço o clarim da Saudade!

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Ancião africano – Júlia Cortines

A testa negra sob a carapinha branca.
Da longa escravidão a tremenda tortura
Não lhe alterou da face a expressão de doçura.
Um riso bom entreabre a sua boca franca.
A vingança do peito um brado não lhe arranca;
Em seu tranquilo olhar o rancor não fulgura,
Quando, na resignada e humílima postura,
Vê se erguer uma mão que ameaça e que espanca.
Verga-lhe agora o corpo um secular cansaço;
E através desse olhar que não pensa, mas sonha,
Desse olhar a que basta um pequenino espaço,
Vê-se uma alma de paz, uma alma de bonança,
Doce, meiga, infantil, amorosa e risonha,
Como uma alma feliz e ingênua de criança.
– Júlia Cortines, em “Vibrações”. Rio de Janeiro: Laemmert & C. – Editores, 1905.

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Terra ideal – Júlia Cortines

Como um pássaro, abrir na amplidão do horizonte

As asas eu quisera, e a uma terra voar

Que existe para além do píncaro do monte

E para além da toalha infinita do mar.

Terra onde o pálio azul das auroras se estende,

Sem nuvens, tinto de oiro o límpido fulgor,

Por sobre um solo verde e viçoso em que esplende

A água viva, a cantar entre margens em flor;

Onde os nimbos jamais, fustigados do açoite

Dos ventos, pelos céus rolam em turbilhões,

E onde o amplo manto arrasta a tenebrosa noite

De planetas broslado e de constelações;

E que do liminar de minha adolescência,

Entre sombras, a furto e a distância, entrevi,

E que em pleno verão e em plena florescência

Da raia do horizonte ainda me sorri…

E para onde eu estendo avidamente os braços,

E para onde se lança, atraído, o meu ser,

Vendo-a sempre, através de infinitos espaços,

De meus braços fugir, de minha alma correr…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Entre abismos – Júlia Cortines

Mistérios só, de um lado, e sombras…
Em seguida,
A estrada tortuosa e aspérrima da vida,
Onde impreca a Revolta, onde brada o Terror,
Onde geme a Saudade e se lastima a Dor,
E, co’o gesto convulso e os traços descompostos,
Batidos pelo vento, à tempestade expostos,
Atropelam-se, em doida e febril confusão,
O Desespero, a Raiva, a Cólera, a Paixão,
Cujo concerto de ais e de pragas abala
O espaço, emudecendo o temporal que estala…
Do outro lado, somente o tenebroso mar
Da morte, em que por fim tudo irá se atufar…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines


Tarde de inverno – Júlia Cortines

(A Cartola Cortines)

Sob o curvo cristal da imensidade

De um céu de transparência etérea e fria,

Em que do posto sol a claridade,

Azul e melancólica, radia,

Vemos o bosque, o rio, a amenidade

Das sombras, a ondulada pradaria,

Como um painel de estranha suavidade

E encantadora e rústica poesia.

Olha como o formoso fruto loiro

Salpica de pequenos pontos de oiro

Aquela verdejante laranjeira!

E além, alem, do céu no alaranjado

Fundo se esbate e avulta o recortado

E sombrio perfil da cordilheira…

Júlia Cortines

Autor: Júlia Costines