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Socorro – Alice Ruiz

Socorro, eu não estou sentindo nada.
Nem medo, nem calor, nem fogo,
não vai dar mais pra chorar
nem pra rir.

Socorro, alguma alma, mesmo que penada,
me empreste suas penas.
Já não sinto amor nem dor,
já não sinto nada.

Socorro, alguém me dê um coração,
que esse já não bate nem apanha.
Por favor, uma emoção pequena,
qualquer coisa que se sinta,
tem tantos sentimentos,
deve ter algum que sirva.

Socorro, alguma rua que me dê sentido,
em qualquer cruzamento,
acostamento, encruzilhada,
socorro, eu já não sinto nada.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Alguma coisa em mim – Alice Ruiz

Alguma coisa em mim
ainda vai longe
alguma coisa em mim
não vai dar pé
alguma coisa em mim
parece que foi ontem
alguma coisa em mim
quer acontecer
alguma coisa em mim
não é mais minha
alguma coisa em mim
saiu da linha
alguma coisa em mim
não disse a que veio
alguma coisa em mim
acerta em cheio
alguma coisa em mim
não tá na cara
alguma coisa em mim
não tá com nada
alguma coisa em mim
não dá desconto
alguma coisa em mim
eu nem te conto
alguma coisa em mim
não tem mais fim.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Avesso – Alice Ruiz

Pode parecer promessa
mas eu sinto que você é a pessoa
mais parecida comigo
que eu conheço
só que do lado do avesso.

Pode ser que seja engano
bobagem ou ilusão
de ter você na minha
mas acho que com você eu me esqueço
e em seguida eu aconteço.

Por isso deixo aqui meu endereço
se você me procurar
eu apareço
se você me encontrar
te reconheço.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Questões III – Alice Ruiz

Se a preguiça é pecado,
o que Deus estará fazendo agora?
Em que se ocupa aquele que tudo pode?
Terá restado algo por fazer
depois que o mundo foi criado?

Se o desejo é fraqueza,
Deus nunca deseja?
Mas se é verdade que nos criou,
algo nele desejou.

Se a vaidade é um erro,
por que nos fez
À sua imagem e semelhança?
Ou terá sido o contrário?

Por que criar alguém
capaz de duvidar da criação?
Por que nós e ele não?

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


É duro ter coração mole – Alice Ruiz

Por favor
não me aperte tanto assim
tenha cuidado, pega leve
olha onde pisa
isso é meu coração
meu ganha-pão
instrumento de trabalho,
meio de vida, profissão
meu arroz com feijão
meu passaporte
para qualquer parte
para qualquer arte
não machuque esse meu coração
preciso dele
para me levar a Marte
sem sair do chão
não me aperte
não machuque
tome cuidado
eu vivo disso
poesia, sonhos
e outras canções
sem emoção
morro de fome
sinto muito
mas não há nada
que eu possa fazer
sem coração.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Renga da noite – Alice Ruiz

noite escura
de luz a luz
nenhuma dívida

ontem hoje amanhã
trabalho pra madrugada
noites tardes manhãs

noite no mato
o cheiro de açucena
é nosso lume

noite de verão
escrevendo vento
eu e o vento

noite de verão
vem com a brisa
um cheiro de primavera

noite no escuro
pensando que era barata
matei o vagalume

noite cheia
lua minguante
meu quarto crescente

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Noite e dia – Alice Ruiz

Não me agradam
essas coisas que despertam
barulho, susto, água fria
tudo na minha cara
mais nenhum sonho por perto.

Não me agradam
essas coisas que adormecem
vazio, escuro, calmaria
tudo que lembra morte
quando nada mais dá certo.

Não me agradam
essas coisas sem poesia
uma noite só noite
um dia só dia.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Projesombras (nós) – Alice Ruiz

por causa de
Regina Silveira

no mundo das sombras
os objetos incham
grávidos de outras formas

silhuetas dissimulando similaridades
paródias e paradoxos
linearidades em desalinho

aqui
armas são a alma das louças
ali
projesombras milimetricamente
calculadas

inauguram com humor
o outro lado do rigor

o primeiro plano
passa a pano de fundo
o que é o fundo?
o que é a figura?
o que é a coisa?
o que é a sombra?

em toda arte
as coisas sonham sombras

In: RUIZ, Alice. Vice-versos. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Cantadas literárias

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Na esquina da Consolação – Alice Ruiz

na esquina da consolação
com a paulista
me perdi de vista
virei artista
equilibrista
meio mãe
meio menina
meio meia-noite
meio inteira
inteiramente alheia
toda lua cheia

In: RUIZ, Alice. Vice-versos. São Paulo: Brasiliense, 1988. (Cantadas literárias

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Enchemos a vida – Alice Ruiz

enchemos a vida
de filhos
que nos enchem a vida

um me enche de lembranças
que me enchem
de lágrimas

uma me enche de alegrias
que enchem minhas noites
de dias

outro me enche de esperanças
e receios
enquanto me incham
os seios


Publicado no livro Paixão xama paixão (1983).

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Lá ia eu – Alice Ruiz

lá ia eu
toda exposta
àquele olhar
de garfo e faca
vendo
a mesa posta
minhas postas em fatias
ouvindo dos convivas
piadas macarrônicas

Publicado no livro Navalhanaliga (1980).

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Drumundana – Alice Ruiz

e agora maria?

o amor acabou
a filha casou
o filho mudou
teu homem foi pra vida
que tudo cria
a fantasia
que você sonhou
apagou
à luz do dia

e agora maria?
vai com as outras
vai viver
com a hipocondria

Publicado no livro Navalhanaliga (1980).

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24)

NOTA: Paródia do poema “José”, do livro POESIAS (1942), de Carlos Drummond de Andrad

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


HAI-KAIS – Alice Ruiz

apaga a luz
antes de amanhecer
um vagalume

vento seco
entre os bambus
barulho d água

tanta poesia no gesto
nenhum poema
o diria

o relógio marca
48 horas sem te ver
sei lá quantas para te esquecer

circuluar
sonho impar
acordo par

desacerto
entre nós
só etceteras

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Topa um pacto de sangue – Alice Ruiz

topa um pacto de sangue
com essa cigana do futuro
que lê
o passado na tua boca
o presente no teu corpo
e nos teus olhos
tanto quanto nos astros?

Publicado no livro Paixão xama paixão (1983).

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Boca da noite – Alice Ruiz

boca da noite
na calada em silêncio
grandes lábios
se abrem em sim

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.16. (Cantadas literárias, 24)

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Ladainha – Alice Ruiz

Era uma vez uma mulher
que via um futuro grandioso
para cada homem que a tocava
um dia
ela se tocou…

Eu pensava que o amor
me faria uma rainha
e quando você chegasse
não seria mais sozinha.

Você chega da gandaia
só pensando numazinha
seu amor é pouca palha
para minha fogueirinha.

O que você jogou fora
é para poucos
o meu mal foi jogar
pérolas aos porcos.

Eu não sou da sua laia
não quero sua ladainha
pra ser mal acompanhada
prefiro ficar na minha.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Assim que vi você – Alice Ruiz

assim que vi você
logo vi que ia dar coisa
coisa feita pra durar
batendo duro no peito
até eu acabar virando
alguma coisa
parecida com você

parecia ter saído
de alguma lembrança antiga
que eu nunca tinha vivido

alguma coisa perdida
que eu nunca tinha tido

alguma voz amiga
esquecida no meu ouvido

agora não tem mais jeito
carrego você no peito
poema na camiseta
com a tua assinatura

já nem sei se é você mesmo
ou se sou eu que virei
parte da tua leitura

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. p.19. (Cantadas literárias, 24

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Sou uma moça polida – Alice Ruiz

sou uma moça polida
levando
uma vida lascada

cada instante
pinta um grilo
por cima
da minha sacada

Publicado no livro Navalhanaliga (1980).

In: RUIZ, Alice. Pelos pelos. São Paulo: Brasiliense, 1984. (Cantadas literárias, 24

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Saudação da saudade – Alice Ruiz

Minha saudade
saúda tua ida
mesmo sabendo
que uma vinda
só é possível
noutra vida.

Aqui, no reino
do escuro
e do silêncio
minha saudade
absurda e muda
procura às cegas
te trazer à luz.

Ali, onde
nem mesmo você
sabe mais
talvez, enfim
nos espere
o esquecimento.

Aí, ainda assim
minha saudade
te saúda
e se despede
de mim.

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz


Se – Alice Ruiz

se por acaso
a gente se cruzasse
ia ser um caso sério
você ia rir até amanhecer
eu ia ir até acontecer
de dia um improviso
de noite uma farra
a gente ia viver
com garra

eu ia tirar de ouvido
todos os sentidos
ia ser tão divertido
tocar um solo em dueto

ia ser um riso
ia ser um gozo
ia ser todo dia
a mesma folia
até deixar de ser poesia
e virar tédio
e nem o meu melhor vestido
era remédio

daí vá ficando por aí
eu vou ficando por aqui
evitando
desviando
sempre pensando
se por acaso
a gente se cruzasse…

Alice Ruiz

Autor: Alice Ruiz