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Natureza morta – Patrícia Galvão

Os livros são dorsos de estantes distantes quebradas.

Estou dependurada na parede feita um quadro.

Ninguém me segurou pelos cabelos.

Puseram um prego em meu coração para que eu não me mova

Espetaram, hein? a ave na parede

Mas conservaram os meus olhos

É verdade que eles estão parados.

Como os meus dedos, na mesma frase.

Espicharam-se em coágulos azuis.

Que monótono o mar!

Os meus pés não dão mais um passo.

O meu sangue chorando

As crianças gritando,

Os homens morrendo

O tempo andando

As luzes fulgindo,

As casas subindo,

O dinheiro circulando,

O dinheiro caindo.

Os namorados passando, passeando,

O lixo aumentando,

Que monótono o mar!

Procurei acender de novo o cigarro.

Por que o poeta não morre?

Por que o coração engorda?

Por que as crianças crescem?

Por que este mar idiota não cobre o telhado das casas?

Por que existem telhados e avenidas?

Por que se escrevem cartas e existe o jornal?

Que monótono o mar!

Estou espichada na tela como um monte de frutas apodrecendo.

Si eu ainda tivesse unhas

Enterraria os meus dedos nesse espaço branco

Vertem os meus olhos uma fumaça salgada

Este mar, este mar não escorre por minhas faces.

Estou com tanto frio, e não tenho ninguém …

Nem a presença dos corvos.

– Patrícia Galvão, em “Patrícia Galvão Pagu: vida-obra”, de Augusto de Campos. Brasiliense, São Paulo, 1987, p. 169. [Publicado originalmente no Suplemento Literário do Diário de São Paulo, em 15-8-1948, assinado pela pseudônima Solange Sohl (Patrícia Galvão)].

Patrícia Galvão

Autor: Patrícia Galvão


Nothing – Patrícia Galvão

Nada nada nada

Nada mais do que nada

Porque vocês querem que exista apenas o nada

Pois existe o só nada

Um pára-brisa partido uma perna quebrada

O nada

Fisionomias massacradas

Tipóias em meus amigos

Portas arrombadas

Abertas para o nada

Um choro de criança

Uma lágrima de mulher à-toa

Que quer dizer nada

Um quarto meio escuro

Com um abajur quebrado

Meninas que dançavam

Que conversavam

Nada

Um copo de conhaque

Um teatro

Um precipício

Talvez o precipício queira dizer nada

Uma carteirinha de travel’s check

Uma partida for two nada

Trouxeram-me camélias brancas e vermelhas

Uma linda criança sorriu-me quando eu a abraçava

Um cão rosnava na minha estrada

Um papagaio falava coisas tão engraçadas

Pastorinhas entraram em meu caminho

Num samba morenamente cadenciado

Abri o meu abraço aos amigos de sempre

Poetas compareceram

Alguns escritores

Gente de teatro

Birutas no aeroporto

E nada.

– Patricia Galvão (Pagú), Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 23/09/1962.

Patrícia Galvão

Autor: Patrícia Galvão


Um peixe – Patrícia Galvão

Um pedaço de trapo que fosse

Atirado numa estrada

Em que todos pisam

Um pouco de brisa

Uma gota de chuva

Uma lágrima

Um pedaço de livro

Uma letra ou um número

Um nada, pelo menos

Desesperadamente nada.

Patrícia Galvão

Autor: Patrícia Galvão


Canal – Patrícia Galvão

Nada mais sou que um canal

Seria verde se fosse o caso

Mas estão mortas todas as esperanças

Sou um canal

Sabem vocês o que é ser um canal?

Apenas um canal?

Evidentemente um canal tem as suas nervuras

As suas nebulosidades

As suas algas

Nereidazinhas verdes, às vezes amarelas

Mas por favor

Não pensem que estou pretendendo falar

Em bandeiras

Isso não

Gosto de bandeiras alastradas ao vento

Bandeiras de navio

As ruas são as mesmas.

O asfalto com os mesmos buracos,

Os inferninhos acesos,

O que está acontecendo?

É verdade que está ventando noroeste,

Há garotos nos bares

Há, não sei mais o que há.

Digamos que seja a lua nova

Que seja esta plantinha voacejando na minha frente.

Lembranças dos meus amigos que morreram

Lembranças de todas as coisas ocorridas

Há coisas no ar…

Digamos que seja a lua nova

Iluminando o canal

Seria verde se fosse o caso

Mas estão mortas todas as esperanças

Sou um canal.

– Patricia Galvão (Pagú), Publicado n’A Tribuna, Santos/SP, em 27-11-1960.

Patrícia Galvão

Autor: Patrícia Galvão