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XXVII – Jorge de Lima

Há uns eclipses, há; e há outros casos:

de sementes de coisas serem outras,

rochedos esvoaçados por acasos

e acasos serem tudo, coisas todas.

Lãs de faces, madeiras invisíveis,

visão de coitos entre os impossíveis,

folhas brotando de âmagos de bronze,

demônios tristes choros nas bifrontes.

Tudo é veleiro sobre as ondas íris,

condores podem ser os baixos ramos,

montes boiarem, aços se delirem.

Vemos ao longe sombras, e são flâmulas,

lábios sedentos, lírios com ventosas,

ódios gerando flores amorosas.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Essa Negra Fulô – Jorge de Lima

Ora, se deu que chegou

(isso já faz muito tempo)

no bangüê dum meu avô

uma negra bonitinha,

chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

— Vai forrar a minha cama

pentear os meus cabelos,

vem ajudar a tirar

a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô

Essa negrinha Fulô!

ficou logo pra mucama

pra vigiar a Sinhá,

pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

vem me ajudar, ó Fulô,

vem abanar o meu corpo

que eu estou suada, Fulô!

vem coçar minha coceira,

vem me catar cafuné,

vem balançar minha rede,

vem me contar uma história,

que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

“Era um dia uma princesa

que vivia num castelo

que possuía um vestido

com os peixinhos do mar.

Entrou na perna dum pato

saiu na perna dum pinto

o Rei-Sinhô me mandou

que vos contasse mais cinco”.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

Vai botar para dormir

esses meninos, Fulô!

“minha mãe me penteou

minha madrasta me enterrou

pelos figos da figueira

que o Sabiá beliscou”.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá

Chamando a negra Fulô!)

Cadê meu frasco de cheiro

Que teu Sinhô me mandou?

— Ah! Foi você que roubou!

Ah! Foi você que roubou!

O Sinhô foi ver a negra

levar couro do feitor.

A negra tirou a roupa,

O Sinhô disse: Fulô!

(A vista se escureceu

que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

Cadê meu lenço de rendas,

Cadê meu cinto, meu broche,

Cadê o meu terço de ouro

que teu Sinhô me mandou?

Ah! foi você que roubou!

Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar

sozinho a negra Fulô.

A negra tirou a saia

e tirou o cabeção,

de dentro dêle pulou

nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!

Cadê, cadê teu Sinhô

que Nosso Senhor me mandou?

Ah! Foi você que roubou,

foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Anjo daltônico – Jorge de Lima

Tempo da infância, cinza de borralho,
tempo esfumado sobre vila e rio
e tumba e cal e coisas que eu não valho,
cobre isso tudo em que me denuncio.

Há também essa face que sumiu
e o espelho triste e o rei desse baralho.
Ponho as cartas na mesa. Jogo frio.
Veste esse rei um manto de espantalho.

Era daltônico o anjo que o coseu,
e se era anjo, senhores, não se sabe,
que muita coisa a um anjo se assemelha.

Esses trapos azuis, olhai, sou eu.
Se vós não os vedes, culpa não me cabe
de andar vestido em túnica vermelha.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


A tristeza era tanta, tanta a mágoa – Jorge de Lima

A tristeza era tanta, tanta a mágoa

que seu anjo da guarda resolvera

lutar com ele, lutar para lutar,

que o interesse da vida perecera.

Ave e serpente, círculo e pirâmide,

os olhos em fuzil e os doces olhos,

os laços, os vôos livres e as escamas.

Que doida simetria nesses ódios!

Que forças transcendentes aros e ângulos

alguém quis que lutassem nesse dia!

Ave e serpente, círculo e pirâmide:

Que divina constante simetria

nessa luta soturna, nessa liça

em que Deus reconstrói o eterno cisne!

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


O grande desastre aéreo de ontem – Jorge de Lima

Para Cândido Portinari

Vejo sangue no ar, vejo o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor. Vejo sangue no ar, vejo chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires. Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


XVIII – Jorge de Lima

Éguas vieram, à tarde, perseguidas,

depositaram bostas sob as vides.

Logo após as borboletas vespertinas,

gordas e veludosas como urtigas

sugar vieram o esterco fumegante.

Se as vísseis, vós diríeis que o composto

das asas e dos restos eram flores.

Porque parecem sexos; nesse instante,

os mais belos centauros do alto empíreo,

pelas pétalas desceram atraídos,

e agora debruçados formam círculos;

depois as beijam como beijam lírios.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Mulher proletária – Jorge de Lima

Mulher proletária — única fábrica
que o operário tem, (fabrica filhos)
tu
na tua superprodução de máquina humana
forneces anjos para o Senhor Jesus,
forneces braços para o senhor burguês.

Mulher proletária,
o operário, teu proprietário
há de ver, há de ver:
a tua produção,
a tua superprodução,
ao contrário das máquinas burguesas
salvar o teu proprietário.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


O acendedor de lampiões – Jorge de Lima

Lá vem o acendedor de lampiões de rua!

Este mesmo que vem, infatigavelmente,

Parodiar o Sol e associar-se à lua

Quando a sobra da noite enegrece o poente.

Um, dois, três lampiões, acende e continua

Outros mais a acender imperturbavelmente,

À medida que a noite, aos poucos, se acentua

E a palidez da lua apenas se pressente.

Triste ironia atroz que o senso humano irrita:

Ele, que doira a noite e ilumina a cidade,

Talvez não tenha luz na choupana em que habita.

Tanta gente também nos outros insinua

Crenças, religiões, amor, felicidade

Como este acendedor de lampiões de rua!

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Cantigas – Jorge de Lima

As cantigas lavam a roupa das lavadeiras.

As cantigas são tão bonitas, que as lavadeiras ficam tão tristes, tão                              pensativas!

As cantigas tangem os bois dos boiadeiros! ¬

Os bois são morosos, a carga é tão grande!

O caminho é tão comprido que não tem fim.

As cantigas são leves …

E as cantigas levam os bois, batem a roupa das lavadeiras.

As almas negras pesam tanto, são

Tão sujas como a roupa, tão pesadas como os bois …

As cantigas são tão boas …

Lavam as almas dos pecadores!

Lavam as almas dos pecadores!

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Alta noite quando escreveis – Jorge de Lima

À senhora Heitor Usai

Alta noite, quando escreveis um poema qualquer

sem sentirdes o que escreveis,

olhai vossa mão — que vossa mão não vos pertence mais;

olhai como parece uma asa que viesse de longe.

Olhai a luz que de momento a momento

sai entre os seus dedos recurvos.

Olhai a Grande Mão que sobre ela se abate

e a faz deslizar sobre o papel estreito,

com o clamor silencioso da sabedoria,

com a suavidade do Céu

ou com a dureza do Inferno!

Se não credes, tocai com a outra mão inativa

as chagas da Mão que escreve.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


XV – Jorge de Lima

A garupa da vaca era palustre e bela,

uma penugem havia em seu queixo formoso;

e na fronte lunada onde ardia uma estrela

pairava um pensamento em constante repouso.

Esta a imagem da vaca, a mais pura e singela

que do fundo do sonho eu às vezes esposo

e confunde-se à noite à outra imagem daquela

que ama me amamentou e jaz no último pouso.

Escuto-lhe o mugido ? era o meu acalanto,

e seu olhar tão doce inda sinto no meu:

o seio e o ubre natais irrigam-me em seus veios.

Confundo-os nessa ganga informe que é meu canto:

semblante e leite, a vaca e a mulher que me deu

o leite e a suavidade a manar de dois seios.

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Vinha boiando o corpo adolescente… – Jorge de Lima

Vinha boiando o corpo adolescente,

belo pastor e sonho perturbado.

Deus abaixou-lhe os cílios alongados

para que ele dormindo flutuasse.

Ressuscita-o, Senhor, essa medusa

de sangue juvenil em rosto impúbere,

desterrado da vida, flor perdida,

irmão gêmeo de Apolo trimagista.

Seca-lhe a espuma que lhe inunda o peito

e as convulsões mortais que o imolaram

às Sodomas ardidas em seu leito.

Anjo adoecido, alheio dançarino

que dançasse em Gomorras incendiadas,

estás cansado; deita-te, menino!

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima


Invenção de Orfeu – Jorge de Lima

Jorge de Lima

1.
Um barão assinalado
sem brasão, sem gume e fama
cumpre apenas o seu fado:
amar, louvar sua dama,
dia e noite navegar,
que é de aquém e de além-mar
a ilha que busca e amor que ama.

Nobre apenas de memórias,
vai lembrando de seus dias,
dias que são as histórias,
histórias que são porfias
de passados e futuros,
naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.

Alegrias descobertas
ou mesmo achadas, lá vão
a todas as naus alertas
de vaia mastreação,
mastros que apoiam caminhos
a países de outros vinhos.
Está é a ébria embarcação.

Barão ébrio, mas barão,
de manchas condecorado;
entre o mar, o céu e o chão
fala sem ser escutado
a peixes, homens e aves,
bocas e bicos, com chaves,
e ele sem chaves na mão.

2.
A ilha ninguém achou
porque todos o sabíamos.
Mesmo nos olhos havia
uma clara geografia.

Mesmo nesse fim de mar
qualquer ilha se encontrava,
mesmo sem mar e sem fim,
mesmo sem terra e sem mim.

Mesmo sem naus e sem rumos,
mesmo sem vagas e areias,
há sempre um copo de mar
para um homem navegar.

Nem achada e nem não vista
nem descrita nem viagem,
há aventuras de partidas
porém nunca acontecidas.

Chegados nunca chegamos
eu e a ilha movediça.
Móvel terra, céu incerto,
mundo jamais descoberto.

Indícios de canibais,
sinais de céu e sargaços,
aqui um mundo escondido
geme num búzio perdido.

Rosa-de-ventos na testa,
maré rasa, aljofre, pérolas,
domingos de pascoelas.
E esse veleiro sem velas!

Afinal: ilha de praias.
Quereis outros achamentos
além dessas ventanias
tão tristes, tão alegrias?

Jorge de Lima

Autor: Jorge de Lima