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Mensagem às crianças do mundo – Jacinta Passos

Crianças da Ásia, a velha escrava lendária
que embalou o berço dos primeiros homens do mundo,
crianças da Ásia, a velha escrava lendária
de cujo seio escorre a riqueza como um leite precioso
que os outros homens do mundo arrancam da boca dos seus filhos.
Crianças chinesas, pequeninos heróis de olhos oblíquos,
na célula inicial do vosso ser
ficou impresso o heroísmo cotidiano da resistência
que já se tornou uma forma de vida do vosso povo, crianças da China.
Crianças da Europa,
da França, Polônia, Itália, Bélgica, Suécia,
vossas pátrias entregaram-se ao invasor
como mulheres que se entregam com medo, sem amor,
vossas pátrias são escravas silenciosas, crianças da Europa.
Crianças alemãs,
fabricadas,
mecanizadas,
exatamente iguais como soldadinhos de chumbo,
que aprendem somente a odiar,
que não conhecem um brinquedo,
crianças sem infância,
vós não sois vós mesmas, crianças da Alemanha.
Crianças judias, vosso povo continua a sofrer,
sobre vós pairam as mesmas mãos assassinas
que degolaram, como há dois mil anos na Judeia,
centenas de cabecinhas infantis e risonhas como as vossas, crianças judias.
Crianças da Rússia, a pátria misteriosa
cujo roteiro os donos do mundo ocultavam
como os antigos roteiros dos tesouros que os bandeirantes, ávidos, buscavam,
crianças da Rússia, a pátria misteriosa
que Stalingrado revelou ao mundo.
Crianças nativas das ilhas oceânicas,
vossos olhos descobrem
que para além das praias e dos coqueiros não existe apenas o mar.
Vossos olhos espiam assustados
as grandes aves metálicas e os monstros marinhos carregados de homens,
homens dos continentes distantes que vêm matar e morrer nas vossas ilhas
oceânicas
Crianças da África, dessa África que no deserto e nas selvas
luta há milênios, luta para ser, luta elementar e titânica
contra o sol, o vento, as águas, as feras bravias e o homem branco.
Crianças da América mestiça, a mulher nova e livre
que concebeu Juarez, Castro Alves, Whitman e Bolívar.
Crianças do mundo, guardai esta mensagem
até o dia em que vossos olhos descubram
que não é apenas um papel rabiscado ou uma lição difícil de soletrar.
Muito além desta hora terrível,
o pão,
o fogo,
a água,
a terra,
o ar,
alegrias elementares pelas quais os homens lutam,
permanecem.
Muito além das dores e dos ódios milenares,
muito além de todas as coisas,
muito além do bem e muito além do mal,
a vida permanece.
Muito além desta hora terrível,
chegará um tempo no tempo
em que a polícia, a moral, as leis e todas as coisas acidentais
serão inúteis para a comunidade humana
como remédios para um organismo que recuperou a saúde.
Chegará um tempo no tempo
em que na terra conquistada, os homens, todos os homens, como vós, minhas
puras criancinhas
receberão a vida, a vida simplesmente, como o dom supremo.
– Jacinta Passos (1942), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Cântico de exílio – Jacinta Passos

Estou cansada, Senhor.
Minha alma insaciável,
a minha alma faminta de beleza,
ávida de perfeição,
é perseguida pelo teu amor.
Puseste dentro dela esta ânsia infinita
cujo ardor queima,
como a sede que em pleno deserto escaldante
persegue o viajor.
Esta angústia, que cresce e que vibra e palpita,
nasceu dentro em mim
no mesmo divino instante
em que, morrendo a última ilusão,
só me restava afinal
uma fria certeza,
cortante como o gume dum punhal.
A certeza de que, tendo tudo no mundo,
nada
pode encher o vazio do meu desejo,
do meu desejo profundo.
Na aridez de minha alma desolada,
esta angústia brotou,
como brota no solo sertanejo,
no solo nu, exausto e sofredor,
solo onde a seca vai matando a vida,
a última flor
– a flor sangrenta do cacto –
cuja raiz parece que sugou
todo o sangue da terra dolorida.
Compreendi, Senhor, compreendi
a voz que sobe
do fundo misterioso do meu ser.
Esta angústia que vive dentro em mim
somente há de ter fim
quando nada mais existir entre nós,
quando, num dia sem crepúsculo,
eu me abismar em ti,
no teu esplendor absoluto.
Mas apenas começo a caminhar,
estou cansada, Senhor.
É bem longo o caminho a percorrer
e sinto-me sozinha.
Levanto os braços para o céu distante
como a palmeira – longo anseio de infinito –
que no deserto se ergue, solitária,
em busca do azul.
Suplico humildemente o teu auxílio.
Dos meus lábios, irrompe como um grito
meu cântico de exílio.
Ah! Senhor, quando se há de realizar
a aspiração profunda do meu ser?
– Jacinta Passos (1937), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro ‘Nossos poemas’. Salvador: A Editora Bahiana, 1942

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


1935 – Jacinta Passos

Tenso como rede de nervos
pressentindo ah! novembro
de esperança e precipício.
Fruto peco.
Novembro de sangue e de heróis.
Grito de assombro morto na garganta,
soluço seco dor sem nome. Ferido.
De morte ferido. Como um animal ferido. Luta
de entranhas e dentes. Natal.
Sangue. Praia Vermelha.
Sangue.
Sangue. É quase um fio
escorrendo
sangrento
tenaz
por dentro dos cárceres,
nas ilhas
e nos corações que a esperança guardaram.
– Jacinta Passos, em “Poemas políticos”. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Crepúsculo – Jacinta Passos

Vai lentamente agonizando o dia…
O poente onde, há pouco, o sol ardia,
se tingiu de cor de ouro, luminosa.
Tons desmaiados de lilás e rosa
listram o puro azul do firmamento
– um poema de luz, neste momento.
A sombra de mansinho vem caindo
e o contorno das coisas, diluindo.
Pesa um grande silêncio, enorme e mudo.
Desce suavemente sobre tudo,
uma bênção dulcíssima de paz.
A treva escura que vem vindo traz
uma saudade vaga, indefinida…
saudade do que já passou na vida,
saudade mansa, boa, imensa e triste,
saudade até dum bem que não existe,
nostalgia sem fim da perfeição
que, nessa hora, invade o coração.
A alma das coisas que vagava a esmo
parece ir recolhendo-se em si mesma,
pondo-se então a meditar consigo.
A silhueta de um convento antigo
ergue-se negra, austera e secular,
banhada em doce luz crepuscular,
no fundo luminoso do poente.
É a longa torre uma oração silente.
Parece uma blasfêmia, o negro véu
de fumaça manchando o ouro do céu.
O silêncio, de súbito, estremece
e pelo ar passa um frêmito de prece.
Vibrou a alma sonora da paisagem
e o canto vem tangido pela aragem.
Quando, do sino, a voz forte badala,
Todo o rumor em derredor se cala
e escuta a voz que soa, alta e vibrante,
na quietude da tarde agonizante.
– Jacinta (1935), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro ‘Nossos poemas’. Salvador: A Editora Bahiana, 1942.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Diálogo na sombra – Jacinta Passos

– Que dissestes, meu bem?
– Esse gosto.
Donde será que ele vem?
Corpo mortal.
Águas marinhas.
Virá da morte ou do sal?
Esses dois que moram no fundo e no fim.
– De quem falas, amor, do mar ou de mim?
– Jacinta Passos (1944), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Eu serei poesia – Jacinta Passos

A poesia está em mim mesma e para além de mim mesma.
Quando eu não for mais um indivíduo,
eu serei poesia.
Quando nada mais existir entre mim e todos os seres,
os seres mais humildes do universo,
eu serei poesia.
Meu nome não importa.
Eu não serei eu, eu serei nós,
serei poesia permanente,
poesia sem fronteiras.
– Jacinta Passos (1942), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro ‘Nossos poemas’. Salvador: A Editora Bahiana, 1942

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Poesia perdida – Jacinta Passos

Ó! a poesia deste momento que passa,
a grande poesia vivida neste instante
por todos os seres da terra,
que palpita nas coisas mais simples
como um rastro luminoso da Beleza
e, sem uma voz humana para eternizá-la,
se perde para sempre, inutilmente…
Por que existo, Senhor, quando não posso cantar?
– Jacinta Passos (1933?), em  parte I “Momentos de Poesia”, do livro ‘Nossos poemas’. Salvador: A Editora Bahiana, 1942.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Incerteza – Jacinta Passos

Em meu olhar se espelha
a sombra interior de incerteza angustiante.
E em minha alma floresce, como rosa vermelha
dum vermelho gritante,
como o clangor clarim,
esta angústia que vive a vibrar dentro em mim.
É a minha vida um longo e ansioso esperar,
num amor que há de vir.
Amor – prazer que é dor e sofrer que é gozar –
Amor que tudo dá sem nada nos pedir,
e que, às vezes, num rápido segundo,
resume a glória toda e toda a ânsia do mundo.
Mas depois deste amor, o que virá? O tédio
insípido e tristonho,
desenganos sem cura e dores sem remédio.
Com a posse dum bem, o desfolhar dum sonho…
Vale mais, muito mais,
desejar sempre um bem, sem possui-lo jamais.
Oh! não. O coração
não se cansa de amar se sabe querer bem.
– Ter para o erro o perdão,
renunciar a si mesmo e viver para alguém –
E se um motivo qualquer,
imperioso e fatal, o sonho desfizer?
Então eu saberei bendizer, comovida,
o amor que já passou,
deixando uma doçura amarga em minha vida.
Quando o sonho murchar,
a esperança está finda,
mas dentro d’alma, fica uma saudade linda.
– Jacinta Passos (1934) , em “O Malho”. Rio de Janeiro – Ano XXXV – nº 185, 17.dez. 1936.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


A missão do poeta – Jacinta Passos

No instante inicial da criação,
quando o mundo acabava de sair
das mãos de Deus,
e quando as coisas todas palpitavam,
quentes ainda do seu sopro criador,
escutou-se o primeiro cântico, na terra,
glorificando o Senhor.
Canta
o poeta porque seu destino é cantar.
Cantar o mesmo canto que irrompeu
dos lábios do primeiro homem criado,
ante a maravilhosa visão da beleza.
da esplêndida harmonia universal.
Cantar ao Senhor,
bendizendo a divina perfeição,
bendizendo o amor infinito
que transbordou, criando as criaturas.
Canta o poeta,
a glória e o sofrimento do universo.
Canta por todas as criaturas,
que não sabem cantar.
Aprende
a realidade íntima das coisas,
o mistério que liga os seres todos,
numa unidade essencial,
e canta
as belezas dispersas pelo mundo,
fragmentos da beleza total.
Sente
a harmonia quebrada do universo,
a desordem estabelecida
pelo egoísmo do homem,
e canta
a angústia da alma humana que procura
o paraíso perdido.
Sofre
a dureza de sua própria resistência
e canta
o fundo e permanente sofrimento
para atingir o estado interior,
quando, de dentro d’alma irrompe, límpido
puro, o canto único,
que eleva as coisas todas para o alto
glorificando o Senhor.
Canta
o poeta porque seu destino é cantar.
– Jacinta Passos (Bahia, 26 de agosto de 1938). em “A Ordem”. Rio de Janeiro, jan/jun, 1940.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Manhã de sol – Jacinta Passos

Dia azul de Maio. Esplende
um sol de ouro no céu que além se estende.

Prolongam-se vibrações do arrebol
na clara luz desta manhã de sol.
O céu ardente,
dum azul luminoso e transparente,
tem doçura infinita…
Um rumor de asas pelo azul palpita,
palpita pelo ar.
É carícia sonora, a música do mar.
O verde risonho
das árvores é lindo como um sonho.
A brisa leve e fresca em surdina cicia.
Há, em toda parte, uma explosão de alegria.
A natureza canta, radiosa,
um hino aleluial na manhã gloriosa.
E todo esse esplendor se comunica
à alma da gente, que vibrando fica
e, com alta emoção esplêndida e feliz,
bendiz,
numa alegria incontida,
a glória de viver e a beleza da vida.
– Janaína Passos (1934), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro ‘Nossos poemas’. Salvador: A Editora Bahiana, 1942.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Canção atual – Jacinta Passos

Plantei meus pés foi aqui amor, neste chão.
Não quero a rosa do tempo aberta
nem o cavalo de nuvem
não quero as tranças de Julieta.
Este chão já comeu coisa tanta que eu mesma nem sei,
bicho
pedra
lixo
lume
muita cabeça de rei.
Muita cidade madura e muito livro da lei.
Quanto deus caiu do céu tanto riso neste chão,
fala de servo calado
pisado
soluço de multidão.
Coisas de nome trocado – fome e guerra, amor e medo –
Tanta dor de solidão.
Muito segredo guardado aqui dentro deste chão.
Coisa até que ninguém viu
ai! tanta ruminação
quanto sangue derramado
vai crescendo deste chão.
Não quero a sina de Deus
nem a que trago na mão.
Plantei meus pés foi aqui
amor, neste chão.
– Jacinta Passos, em “Poemas políticos”. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Meu sonho – Jacinta Passos

O meu sonho
mais risonho
é suave e pequenino
resumindo entretanto o meu destino.
É de cor azul escura
como o mar que longe chora
É cor de infinito e de ânsia
cor do céu, cor do mar, cor de distância.
Tem a leve suavidade
da saudade,
e a cantante doçura
de um regato que murmura.
Macio e encantador
é carícia de pluma e perfume de flor.
O meu sonho
mais risonho,
é para mim cada momento
o motivo maior de doce encantamento.
– Jacinta Passos, em “A Tarde”. Salvador BA, 6. out. 1937.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Canção da alegria – Jacinta Passos

Urupemba
urupemba
mandioca aipim!
peneirar
peneirou
que restou no fim?
Peneira massa peneira,
peneira peneiradinha,
(Ai! vida tão peneirada)
peneira nossa farinha.
Olhe o rombo
olhe o rombo
olhe o rombo arrombou!
olhe o cisco
olhe o risco
urupemba furou!
Eh! sai espantalho
da ponta do galho!
Escorra! Escorra!
Tirai essa borra!
Urupemba
urupemba
mandioca aipim!
peneirar
peneirou
que restou no fim?
Farinha fininha
peneiradinha!
Ai! vida, que vida
nuinha! nuinha!
– Jacinta Passos em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Navio de imigrantes – Jacinta Passos

a Lasar Segall

Gestos parados
no limiar
do céu e mar.
Corpos largados
desamparados,
límpido tempo
de primavera
mora no fundo
de vossa espera.
Navio sombrio, que levas no bojo?
– descobre o teu véu:
navegas em busca da terra ou do céu?
Corpos humanos
suportam corpos,
seus desenganos.
Corpo, cansaço,
longa viagem,
busca um regaço,
terra ou miragem
Arca ou navio,
nau ou galera,
vens doutra era,
séculos a fio. 
Qual o teu rumo?
Levas o sumo
da dor humana
que se supera,
vida ou quimera
No bojo teu,
levas o sonho
de Prometeu.
Levas em ti
o amanhã,
judeus do Egito
a Canaã.
Levas os negros,
nau ou barcaça,
e mais o drama
de sua raça.

Levas Chiquinha
e sua dor,
a dor que é minha.
Levas Colombo,
levas o povo
e a descoberta
dum mundo novo.
No limiar
do céu e mar.
Qual o teu rumo?

Só tu resistes,
as águas tristes
cobriram tudo,
sozinho, mudo,
sinais profundos
vês no horizonte,
tu és a ponte
entre dois mundos.
Asas alerta,
fim, descoberta,
anunciação,
ramo de paz,
âncora, chão,
beira de cais,
ave, esperança,
nau da aliança.
– Jacinta Passos (1944), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Canção da liberdade – Jacinta Passos

Eu só tenho a vida minha.
Eu sou pobre pobrezinha,
tão pobre como nasci,
não tenho nada do mundo,
tudo que tive, perdi.
Que vontade de cantar:
a vida vale por si.
   Nada eu tenho neste mundo,
   sozinha!
   Eu só tenho a vida minha.
Eu sou planta sem raiz
que o vento arrancou do chão,
já não quero o que já quis,
livre, livre o coração,
vou partir para outras terras,
nada mais eu quero ter,
só o gosto de viver.  
   Nada eu tenho neste mundo,
   sozinha!
   Eu só tenho a vida minha.
Sem amor e sem saúde,
sem casa, nenhum limite,
sem tradição, sem dinheiro,
sou livre como a andorinha,
tem por pátria o mundo inteiro,
pelos céus cantando voa,
cantando que a vida é boa.
Nada eu tenho neste mundo,
sozinha!
Eu só tenho a vida minha.
– Jacinta Passos (1943), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


O mar – Jacinta Passos

Múrmuro e lento,
o mar ao longe se espraia.
Geme e brame, ruge e clama
o seu tormento,
e, soluçando, vem morrer na praia.
O mar imenso…
Quando eu escuto o seu rumor soturno,
fico a cismar.
Penso
no destino do mar
– ser eterno cantor –
cantar a sua dor de eterno insatisfeito,
cantar o seu sonho infinito desfeito,
cantar o mesmo canto que embalou
a infância do mundo.
O mar imenso… encarcerado
dentro dos frios limites dum traçado.
Ouço vozes estranhas… Vem do fundo
do mar ou de dentro de mim,
esse surdo clamor?
São vozes obscuras,
vozes desconhecidas,
vozes que irrompem
da parte ignorada de mim mesma.
Por que esta sede imensa de saber,
desvendar os segredos escondidos,
despir as coisas
de suas transitórias aparências,
penetrar no seu âmago,
ver a essência do ser?
Pobre desejo humano esbarra, mudo,
ante o mistério de tudo.
Por que este desejar que não se cansa,
por que este destino errante de correr
sempre atrás dum bem que não se alcança?
Anseio de sentir-se um instante feliz,
anseio de eternizar esse instante que passa,
perdendo-se no passado, no infinito do tempo,
como se perde um pouco de fumaça
na amplidão dos espaços infinitos…
Por que este desejar que não tem fim,
se o mísero coração
sabe que nenhum bem lhe satisfaz?
Foge o minuto fugaz
e no fundo de toda ventura sorvida
há um gosto de cinza.
Perguntas sem resposta, atiradas à toa,
inutilmente…
Ouço vozes estranhas… Vem do fundo
do mar ou de dentro de mim
esse surdo clamor?
São vozes de sofrimento, de amarguras,
vozes de todas as criaturas
que falam por minha voz.
Todas as criaturas que sofreram
esta ânsia indefinida
– angústia milenária como a vida –
de querer atingir o inatingível.
Vozes de todos que sentiram, vivo,
cruel, o trágico destino humano
de pássaro cativo:
– ter diante de si o vasto céu azul,
luminoso e ardente,
ter asas, asas para bem alto subir,
e sentir
que não pode voar,
impotente… impotente…
– Jacinta Passos (1935), em parte I “Momentos de Poesia”, do livro ‘Nossos poemas’. Salvador: A Editora Bahiana, 1942.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Canção do amor livre – Jacinta Passos

Se me quiseres amar
não despe somente a roupa.
Eu digo: também a crosta
feita de escamas de pedra
e limo dentro de ti,
pelo sangue recebida
tecida
de medo e ganância má.
Ar de pântano diário
nos pulmões.
Raiz de gestos legais
e limbo do homem só
numa ilha.
Eu digo: também a crosta
essa que a classe gerou
vil, tirânica, escamenta.
Se me quiseres amar.
Agora teu corpo é fruto.
Peixe e pássaro, cabelos
de fogo e cobre. Madeira
e água deslizante, fuga
ai rija
cintura de potro bravo.
Teu corpo.
Relâmpago depois repouso
sem memória, noturno.
– Jacinta Passos, em “Poemas políticos”. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


O rio – Jacinta Passos

Tantos rios como eu abriram leito de pedras
e pranto. Um dia perguntávamos:
– Dizei-me, curva, onde vou? casa trono rocha sois
aqueles que ficam, minha lei é não parar. Sigo
fio de água, água humilde sou, para onde? Ó curva,
falai. Água de revolta, espuma e ódio nos poros
na garganta no útero, pranto de mulher, água
de fel antigo, quem é meu semelhante? Dizei, onde vou?
Leito de pedras e pranto. Súbito, próximo,
Atravessou, olhai, ele!
ali na frente, vivo, tão vivo,
ele sim! o rio das águas inúmeras. Correi
doçuras e dores, punhos, Partido, esperança nossa…
– Jacinta Passos, em “Poemas políticos”. Rio de Janeiro: Livraria-Editora Casa do Estudante do Brasil, 1951.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Cantigas das mães – Jacinta Passos

(para minha mãe)
Fruto quando amadurece
cai das árvores no chão,
e filho depois que cresce
não é mais da gente, não.
Eu tive cinco filhinhos
e hoje sozinha estou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Tão lindos, tão pequeninos,
como cresceram depressa,
antes ficassem meninos
os filhos do sangue meu,
que meu ventre concebeu,
que meu leite alimentou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Muitas vidas a mãe vive.
Os cinco filhos que tive
por cinco multiplicaram
minha dor, minha alegria.
Viver de novo eu queria
pois já hoje mãe não sou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
Foram viver seus destinos,
sempre, sempre foi assim.
Filhos juntinhos de mim,
Berço, riso, coisas puras,
briga, estudos, travessuras,
tudo isso já passou.
Não foi a morte, não foi,
oi!
foi a vida que roubou.
– Jacinta Passos em “Nossos poemas”. Salvador: A Editora Bahiana, 1942.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos


Sangue Negro – Jacinta Passos

para Jorge Amado

Terras curvas do Recôncavo
onde adormece o oceano,
no teu subsolo circula
sangue negro cor da noite,
da cor do preto africano,
preto cujo sangue escravo
regou o solo baiano.
Terras curvas do Recôncavo
onde adormece o oceano,
de tuas veias abertas
escorre
o petróleo baiano,
sangue negro do Brasil. 
Operário mestiço!
tuas ásperas mãos – e tu não sabes disso –
tuas mãos quando movem as máquinas do Poço
movem forças latentes,
movem forças criadoras,
movem o Brasil, tuas mãos libertadoras.
Teu gesto inicial se transmite e propaga,
repercute longe até nas selvas do Oeste
e cresce, desdobrado como cresce uma onda
de mar,
cresce e acelera o ritmo de Volta Redonda,
gerando máquinas sem parar,
e gera usinas
onde o ferro e os metais tirados das minas
do ventre da terra,
se transformam em carros e trens, navios e aviões, em armas de guerra.
E as máquinas nascidas do teu movimento,
rápidas mensagens humanas levarão,
mensagens de conhecimento,
mensagens de aproximação
entre todos os brasileiros
irmãos que a distância isolou, como estrangeiros,
em plena solidão.
O gaúcho galopando nos pampas do sul,
freará o cavalo
e vai, surpreso, descobrir no vale amazônico
onde dormem forças primordiais,
que irmãos nortistas modelam um mundo novo,
com a borracha,
a borracha que desce dos longos seringais.
No Nordeste, o vaqueiro cantará:
O homem tira da terra,
a chuva que o céu não dá.
Rã quando canta não erra,
é chuva que vai chegá,
o homem tira da terra,
a chuva que o céu não dá.
Boi gordo pasta na serra,
tão contente a gente está,
o homem tira da terra,
a chuva que o céu não dá.
Quando venceu nossa guerra
logo peguei a cantá,
o homem tira da terra,
a chuva que o céu não dá.
O lavrador
largará a enxada que dos pais recebeu
e moverá os arados mecânicos
que os homens de outras terras lhe ensinaram
através da distância e dos ventos oceânicos.
Operário mestiço!
teu gesto inicial que faz brotar os frutos
e nascer as grandes cidades,
teu gesto move as máquinas da indústria,
move o Brasil,
move o povo crescendo, amadurecendo, se tornando viril.
Terras curvas do Recôncavo
onde adormece o oceano,
no teu subsolo circula
sangue negro cor da noite,
da cor preto-africano,
preto cujo sangue escravo
regou o solo baiano.
Terras curvas do Recôncavo
onde adormece o oceano,
de tuas veias abertas
escorre
o petróleo baiano,
sangue negro do Brasil.
– Jacinta Passos (1943), em “Canção da partida”. São Paulo: Edições Gaveta, 1945.

Jacinta Passos

Autor: Jacinta Passos