Poeta: Ivan Junqueira

No fundo do leito – Ivan Junqueira

No leito fundo em que descansas,em meio às larvas e aos livores, longe do mundo e dos terroresque te infundia o aço das lanças; longe dos reis e dos senhoresque te esqueceram nas andanças,longe das taças e das danças,e dos feéricos rumores; longe das cálidas criançasque ateavam fogo aos corredorese se expandiam, quais vapores,entre as …

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O poema – Ivan Junqueira

Não sou eu que escrevo o meu poema:ele é que se escreve e que se pensa,como um polvo a distender-se, lento,no fundo das águas, entre anêmonasque nos abismos do mar despencam.Ele é que se escreve com a penada memória, do amor, do tormento,de tudo o que aos poucos se relembra:um rosto, uma paisagem, a intensapulsação …

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Quase uma sonata – Ivan Junqueira

É música o rigor com que te movesà fluida superfície do mistério,os pés quase suspensos, a aéreapartitura do corpo, seus acordes. Espaço e tempo são teu solo. E colhem,não tanto a luz que entornas, mas o pólencom que ela cinge e arroja as coisas mortasalém da espessa morte que as enrola.E música o silêncio que te …

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Relâmpago – Ivan Junqueira

A navalha de luz do relâmpagorasga a carne da escuridãocom um estrondo que reboamais alto que as trombetas do Juízo.Será assim o clarão que nos cegaquando a alma, extenuada,galga os degraus da imortalidade?– Ivan Junqueira, em “Essa música”. Rio de Janeiro: Rocco, 2014. Ivan Junqueira Autor: Ivan Junqueira

Elegia íntima – Ivan Junqueira

Minha mãe chorando no fundo da noiterachou o silêncio do quarto adormecido.Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,Um relógio preto gotejava barulho.Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.Minha mãe chorando no fundo da noiteApunhalou o sono de Deus.– Ivan Junqueira, em “Os mortos”. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1964. Ivan …

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Ritual – Ivan Junqueira

Fecho as janelas desta casa(seus corredores, seus fantasmassua aérea arquitetura de pássaro)fecho a insônia que inundavameu quarto debruçado sobre o nadafecho as cortinas onde a larvado tempo tece agora sua pragafecho a clara algazarra plácidadas vozes sangüíneas da alvoradafecho o trecho taciturno da tocataa chuva percutindo as teclas do telhadoas sombras navegando pelo pátio    …

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Flor amarela – Ivan Junqueira

Atrás daquela montanhatem uma flor amarela;dentro da flor amarela,o menino que você era.Porém, se atrás daquelamontanha não houvera tal flor amarela,o importante é acreditarque atrás de outra montanhatenha uma flor amarelacom o menino que você eraguardado dentro dela.– Ivan Junqueira, em “Poesia reunida”. São Paulo: Girafa Editora, 2005. Ivan Junqueira Autor: Ivan Junqueira

Testamento – Ivan Junqueira

Sem trilhas no labirinto,solitário, a passo lento,leio o infausto testamentode um infante agora extinto. O que ensina esse lamentoa quem o escuta e, faminto,só o aprende à luz do instinto,e nunca à do entendimento? Não será acaso o ventoo que nas vértebras sinto?Ou será que apenas minto,e mente-me o pensamento? Não há dor nem sofrimentono …

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Hoje – Ivan Junqueira

A sensação oca de que tudo acabouo pânico impresso na face dos nervoso solitário inverno da carnea lágrima, a doce lágrima impossível…e a chuva soluçando devagarsobre o esqueleto tortuoso das árvores– Ivan Junqueira, em Os mortos”. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1964. Ivan Junqueira Autor: Ivan Junqueira

Tristeza – Ivan Junqueira

Esta noite eu durmo de tristeza.(O sono que eu tinha morreu ontemqueimado pelo fogo de meu bem.)O que há em mim é só tristeza,uma tristeza úmida, que se infiltrapelas paredes de meu corpoe depois fica pingando devagarcomo lágrima de olho escondido.(Ali, no canto apagado da sala,meu sorriso é apenas um brinquedoque a mãozinha da criança …

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Morrer – Ivan Junqueira

Pois morrer é apenas isto:cerrar os olhos vaziose esquecer o que foi visto; é não supor-se infinito,mas antes fáustico e ambíguo,jogral entre a história e o mito; é despedir-se em surdina, sem epitáfio melífluo ou testamento sovina; é talvez como despir o que em vida não vestia e agora é inútil vestir; é nada deixar aqui: memória, pecúlio, estirpe, sequer um traço de si; é findar-se …

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