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Vai tudo em mim – Ivan Junqueira

Vai tudo em mim, enfim, se despedindo
neste pomar sem ramos ou maçãs,
sem sol, sem hera ou relva, sem manhãs
que me recordem o que foi e é findo.
Tudo se faz sombrio, e as sombras vãs
do que eu não fui agora vão cobrindo
os ermos epitáfios, indo e vindo
entre as hermas e as lápides mais chãs.
Tudo se esvai num remoinho infindo
de atávicas moléculas malsãs:
essas do avô, do pai e das irmãs
que o sangue foi à alma transmitindo.
Tudo o que eu fui em mim de mim fugindo
em meu encalço vem me perseguindo.
– Ivan Junqueira, em “O outro lado”. Rio de Janeiro: Record, 2007.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Ó memória insepulta – Ivan Junqueira

Ó memória insepulta nas areias
da praia a que regresso, mas não ouço
ali a voz dos ventos, o balouço
da espuma nas espáduas das sereias.
Ó memória da infância sob as teias
que as aranhas teceram rente ao poço
do jardim: ervas, lodo, o calabouço
onde se afiam os punhais, as meias
palavras, as intrigas cujas veias
vertem ódios tão duros quanto um osso
e tudo o que separa, fundo fosso,
as coisas puras das mais vis e feias.
Ó memória que augura: ainda és moço,
e a velhice é tão só outro alvoroço.
– Ivan Junqueira, em “Essa música”. Rio de Janeiro: Rocco, 2014, p. 47.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


O poema – Ivan Junqueira

Não sou eu que escrevo o meu poema:
ele é que se escreve e que se pensa,
como um polvo a distender-se, lento,
no fundo das águas, entre anêmonas
que nos abismos do mar despencam.
Ele é que se escreve com a pena
da memória, do amor, do tormento,
de tudo o que aos poucos se relembra:
um rosto, uma paisagem, a intensa
pulsação da luz manhã adentro.
Ela se escreve vindo do centro
de si mesmo, sempre se contendo.
É medido, estrito, minudente,
música sem clave ou instrumentos
que se escuta entre o som e o silêncio.
As palavras com que em vão ao invento
não são mais que ociosos ornamentos,
e nenhuma gala lhe acrescentam.
Seja belo ou, ao invés, horrendo,
a ele é que cabe todo engenho,
não a mim, que apenas o contemplo
como um sonho que se sustenta
sobre o nada, quando o mito e a lenda
eram as vísceras de que o poema
se servia para ir-se escrevendo.
– Ivan Junqueira, em “Essa música”. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Quase uma sonata – Ivan Junqueira

É música o rigor com que te moves
à fluida superfície do mistério,
os pés quase suspensos, a aérea
partitura do corpo, seus acordes. 
Espaço e tempo são teu solo. E colhem,
não tanto a luz que entornas, mas o pólen
com que ela cinge e arroja as coisas mortas
além da espessa morte que as enrola.
E música o silêncio que te cobre
quando lampeja à noite tua nudez,
em franjas derramada sobre o leito
das águas, onde as algas te incendeiam
porque semelhas, mais que o mar profundo,
o intemporal princípio e fim de tudo.
– Ivan Junqueira, em “Opus descontínuo”. 1969-1975.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Cinco movimentos – I – Ivan Junqueira

Que amor é esse que, desperto, dorme
e quando acorda faz-se ambíguo sonho,
transfigurando o belo no medonho
e em noite espessa a vida multiforme?
Então amor é só o que suponho,
o que não digo por ser tão informe
que fôrma alguma lhe é jamais conforme
como este molde em que teimoso o ponho?
Será amor o que se esquiva à fala
ou à linguagem que o pretende claro?
E o que seria esse tremor mais raro
que ao aflorar parece que se cala?
Amor oblíquo que olha de soslaio,
mas que ilumina e queima como raio…
– Ivan Junqueira, em “Cinco movimentos”. Rio de Janeiro: Gastão de Holanda Editor, 1982.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Relâmpago – Ivan Junqueira

A navalha de luz do relâmpago
rasga a carne da escuridão
com um estrondo que reboa
mais alto que as trombetas do Juízo.
Será assim o clarão que nos cega
quando a alma, extenuada,
galga os degraus da imortalidade?
– Ivan Junqueira, em “Essa música”. Rio de Janeiro: Rocco, 2014.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Elegia íntima – Ivan Junqueira

Minha mãe chorando no fundo da noite
rachou o silêncio do quarto adormecido.
Meu pai olhava o escuro e não dizia nada,
Um relógio preto gotejava barulho.
Lá fora o vento lambia as espáduas do céu.
Minha mãe chorando no fundo da noite
Apunhalou o sono de Deus.
– Ivan Junqueira, em “Os mortos”. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1964.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Ritual – Ivan Junqueira

Fecho as janelas desta casa
(seus corredores, seus fantasmas
sua aérea arquitetura de pássaro)
fecho a insônia que inundava
meu quarto debruçado sobre o nada
fecho as cortinas onde a larva
do tempo tece agora sua praga
fecho a clara algazarra plácida
das vozes sangüíneas da alvorada
fecho o trecho taciturno da tocata
a chuva percutindo as teclas do telhado
as sombras navegando pelo pátio
                                               e o bambuzal
Fecho as torneiras da memória
Fecho também a tumultuosa torrente de vida 
que poderia ter rompido o cerco das paredes 
e feito explodir a argamassa de calcário e solidão
Fecho ainda as lentas pálpebras da amada 
o mofo acumulado entre seus lábios 
o limo que vestiu sua carne desolada
Fecho tudo e depois me fecho
Estou cansado
                 estou triste
                                     estou só
– Ivan Junqueira, em “Os mortos”. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1964.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Esse punhado de ossos – Ivan Junqueira

a Moacyr Felix
Esse punhado de ossos que, na areia,
alveja e estala à luz do sol a pino
moveu-se outrora, esguio e bailarino,
como se move o sangue numa veia.
Moveu-se em vão, talvez, porque o destino
lhe foi hostil e, astuto, em sua teia
bebeu-lhe o vinho e devorou-lhe à ceia
o que havia de raro e de mais fino.
Foram damas tais ossos, foram reis,
e príncipes e bispos e donzelas,
mas de todos a morte apenas fez
a tábua rasa do asco e das mazelas.
E ai, na areia anônima, eles moram.
Ninguém os escuta. Os ossos choram.
– Ivan Junqueira,  em “Poemas Reunidos”. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Talvez o tempo saiba – Ivan Junqueira

Talvez o vento saiba dos meus passos,
das sendas que os meus pés já não abordam,
das ondas cujas cristas não transbordam
senão o sal que escorre dos meus braços.
As sereias que ouvi não mais acordam
à cálida pressão dos meus abraços,
e o que a infância teceu entre sargaços
as agulhas do tempo já não bordam.
Só vejo sobre a areia vagos traços
de tudo o que meus olhos mal recordam
e os dentes, por inúteis, não concordam
sequer em mastigar como bagaços.
Talvez se lembre o vento desses laços
que a dura mão de Deus fez em pedaços.
– Ivan Junqueira, em “Poemas reunidos”. Rio de Janeiro: Record, 1999.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Flor amarela – Ivan Junqueira

Atrás daquela montanha
tem uma flor amarela;
dentro da flor amarela,
o menino que você era.
Porém, se atrás daquela
montanha não houver
a tal flor amarela,
o importante é acreditar
que atrás de outra montanha
tenha uma flor amarela
com o menino que você era
guardado dentro dela.
– Ivan Junqueira, em “Poesia reunida”. São Paulo: Girafa Editora, 2005.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Testamento – Ivan Junqueira

Sem trilhas no labirinto,
solitário, a passo lento,
leio o infausto testamento
de um infante agora extinto.

O que ensina esse lamento
a quem o escuta e, faminto,
só o aprende à luz do instinto,
e nunca à do entendimento?

Não será acaso o vento
o que nas vértebras sinto?
Ou será que apenas minto,
e mente-me o pensamento?

Não há dor nem sofrimento
no que leio, mas consinto
em que ali tudo está tinto
do mais fáustico argumento:

não o aroma do jacinto
nem a paz do esquecimento,
mas o grifo que, violento,
verte o verde do absinto.
– Ivan Junqueira, em “A sagração dos ossos”.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Hoje – Ivan Junqueira

A sensação oca de que tudo acabou
o pânico impresso na face dos nervos
o solitário inverno da carne
a lágrima, a doce lágrima impossível…
e a chuva soluçando devagar
sobre o esqueleto tortuoso das árvores
– Ivan Junqueira, em Os mortos”. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1964.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Tristeza – Ivan Junqueira

Esta noite eu durmo de tristeza.
(O sono que eu tinha morreu ontem
queimado pelo fogo de meu bem.)
O que há em mim é só tristeza,
uma tristeza úmida, que se infiltra
pelas paredes de meu corpo
e depois fica pingando devagar
como lágrima de olho escondido.
(Ali, no canto apagado da sala,
meu sorriso é apenas um brinquedo
que a mãozinha da criança quebrou.)
E o resto é mesmo tristeza.
– Ivan Junqueira, em Os mortos”. Rio de Janeiro: Atelier de Arte, 1964.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Morrer – Ivan Junqueira

Pois morrer é apenas isto:
cerrar os olhos vazios
e esquecer o que foi visto; 
é não supor-se infinito,
mas antes fáustico e ambíguo,
jogral entre a história e o mito; 
é despedir-se em surdina, 
sem epitáfio melífluo 
ou testamento sovina; 
é talvez como despir 
o que em vida não vestia 
e agora é inútil vestir; 
é nada deixar aqui: 
memória, pecúlio, estirpe, 
sequer um traço de si; 
é findar-se como um círio 
em cuja luz tudo expira 
sem êxtase nem martírio.
– Ivan Junqueira, em “O grifo”. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1987.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


No fundo do leito – Ivan Junqueira

No leito fundo em que descansas,
em meio às larvas e aos livores,

longe do mundo e dos terrores
que te infundia o aço das lanças;

longe dos reis e dos senhores
que te esqueceram nas andanças,
longe das taças e das danças,
e dos feéricos rumores;

longe das cálidas crianças
que ateavam fogo aos corredores
e se expandiam, quais vapores,
entre as alfaias e as faianças

de tua herdade, cujas flores
eram fatídicas e mansas,
mas que se abriam, fluidas tranças,
quando as tangiam teus pastores;

longe do fel, do horror, das dores,
é que recolho essas lembranças
e as deito agora, já sem cores,
no leito fundo em que descansas.
– Ivan Junqueira, em “A sagração dos ossos”.  Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1994.

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira


Ó deâmbula alma inquieta – Ivan Junqueira

Animula vagula, blandula,
Hospes comesque corporis (…)
Publius Aelius Hadrianus
Ó deâmbula alma inquieta,
por que te moves às cegas
nesse ermo que se enovela
entre o que és e o que pareces?
Por que te pões tão secreta,
se debaixo de teus véus
todos logo te percebem
nos mil papéis que interpretas?
Por que temes, alma inquieta,
esse dia em que, perplexa,
souberes que não te hospedam
o paraíso ou o inferno?
Não te basta o que é terrestre
e se dá à flor da pele?
Por que buscas o mistério
no abismo que desconheces?
É por angústia que o anelas
ou só por gula das trevas
que, profundas, te apetecem
como as carcaças ao verme?
É pela luz que, feérica,
confias ver entre as vértebras
da solidão que te cerca
desde que ao mundo vieste?
– Ivan Junqueira, em “Essa música”. Rio de Janeiro: Rocco, 2014

Ivan Junqueira

Autor: Ivan Junqueira