Conceição Evaristo

Da calma e do silêncio – Conceição Evaristo

Quando eu mordera palavra,por favor,não me apressem,quero mascar,rasgar entre os dentes,a pele, os ossos, o tutanodo verbo,para assim versejaro âmago das coisas.Quando meu olharse perder no nada,por favor,não me despertem,quero reter,no adentro da íris,a menor sombra,do ínfimo movimento.Quando meus pésabrandarem na marcha,por favor,não me forcem.Caminhar para quê?Deixem-me quedar,deixem-me quieta,na aparente inércia.Nem todo viandanteanda estradas,há mundos […]

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Da menina, a pipa – Conceição Evaristo

Da menina a pipae a bola da veze quando a sua íntimapele, macia seda, brincavano céu descoberto da ruaum barbante áspero,másculo cerol, cruelrompeu a tênue linhada pipa-borboleta da menina. E quando o papelseda esgarçadada meninaestilhaçou-se entreas pedras da calçadaa menina rolouentre a dore o abandono. E depois, sempre dilacerada,a menina expulsou de siuma boneca ensangüentadaque

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Do fogo que em mim arde – Conceição Evaristo

Sim, eu trago o fogo,o outro,não aquele que te apraz.Ele queima sim,é chama vorazque derrete o bivo de teu pincelincendiando até ás cinzasO desejo-desenho que fazes de mim. Sim, eu trago o fogo,o outro,aquele que me faz,e que molda a dura penade minha escrita.é este o fogo,o meu, o que me ardee cunha a minha

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A noite não adormece nos olhos das mulheres – Conceição Evaristo

Em memória de Beatriz Nascimento A noite não adormecenos olhos das mulheresa lua fêmea, semelhante nossa,em vigília atenta vigiaa nossa memória. A noite não adormecenos olhos das mulhereshá mais olhos que sonoonde lágrimas suspensasvirgulam o lapsode nossas molhadas lembranças. A noite não adormecenos olhos das mulheresvaginas abertasretêm e expulsam a vidadonde Ainás, Nzingas, Ngambelese outras

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Do velho ao jovem – Conceição Evaristo

Na face do velhoas rugas são letras,palavras escritas na carne,abecedário do viver. Na face do jovemo frescor da pelee o brilho dos olhossão dúvidas. Nas mãos entrelaçadasde ambos,o velho tempofunde-se ao novo,e as falas silenciadasexplodem. O que os livros escondem,as palavras ditas libertam.E não há quem ponhaum ponto final na históriaInfinitas são as personagens…Vovó Kalinda,

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Para a menina – Conceição Evaristo

Para todas as meninas e meninos de cabelos trançados ou sem tranças. Desmancho as tranças da meninae os meus dedos trememmedos nos caminhosrepartidos de seus cabelos. Lavo o corpo da meninae as minhas mãos tropeçamdores nas marcas-lembrançasde um chicote traiçoeiro. Visto a meninae aos meus olhosa cor de sua vesteinsiste e se confundecom o sangue

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Certidão de óbito – Conceição Evaristo

Os ossos de nossos antepassadoscolhem as nossas perenes lágrimaspelos mortos de hoje. Os olhos de nossos antepassados,negras estrelas tingidas de sangue,elevam-se das profundezas do tempocuidando de nossa dolorida memória. A terra está coberta de valase a qualquer descuido da vidaa morte é certa.A bala não erra o alvo, no escuroum corpo negro bambeia e dança.A

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Meia lágrima – Conceição Evaristo

Não,a água não me escorreentre os dedos,tenho as mãos em conchae no côncavo de minhas palmasmeia gota me basta. Das lágrimas em meus olhos secos,basta o meio tom do soluçopara dizer o pranto inteiro. Sei ainda ver com um só olho,enquanto o outro,o cisco cerceiae da visão que me restavazo o invisívele vejo as inesquecíveis

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Filhos da rua – Conceição Evaristo

O banzo renasce em mim.Do negror de meus oceanosa dor submerge revisitadaesfolando-me a peleque se alevanta em sóise luas marcantes de umtempo que está aqui. O banzo renasce em mime a mulher da aldeiapede e clama na chama negraque lhe queima entre as pernaso desejo de retomarde recolher parao seu útero-terraas sementesque o vento espalhoupelas

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Vozes-mulheres – Conceição Evaristo

A voz de minha bisavóecoou criançanos porões do navio.ecoou lamentosde uma infância perdida. A voz de minha avóecoou obediênciaaos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãeecoou baixinho revoltano fundo das cozinhas alheiasdebaixo das trouxasroupagens sujas dos brancospelo caminho empoeiradorumo à favela. A minha voz aindaecoa versos perplexoscom rimas de sangueefome. A voz de minha

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Recordar é preciso – Conceição Evaristo

O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentosA memória bravia lança o leme:Recordar é preciso.O movimento vaivém nas águas-lembrançasdos meus marejados olhos transborda-me a vida,salgando-me o rosto e o gosto.Sou eternamente náufraga,mas os fundos oceanos não me amedrontame nem me imobilizam.Uma paixão profunda é a bóia que me emerge.Sei que o mistério subsiste além das

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Negro-Estrela – Conceição Evaristo

Em memória de Osvaldo, doce companheiro meu, pelo tempo que a vida nos permitiu Quero te viver na plenitudedo momento gastovivido em toda sua essênciasem sobra ou falta. Quero te viver,vivendo o tempo exatode nossa vida. Quero te viverme vivendo plenado teu, do nossovazio buraco.Quero te viver, Negro-Estrela,compondo em mim constelaçõesde tua presençapara quando um

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De mãe – Conceição Evaristo

O cuidado de minha poesiaaprendi foi de mãe,mulher de pôr reparo nas coisas,e de assuntar a vida. A brandura de minha falana violência de meus ditosganhei de mãe,mulher prenhe de dizeres,fecundados na boca do mundo. Foi de mãe todo o meu tesouroveio dela todo o meu ganhomulher sapiência, yabá,do fogo tirava águado pranto criava consolo.

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Da conjuração dos versos – Conceição Evaristo

— nossos poemas conjuram e gritam — O silêncio mordidorebela e revelanossos aise são tantos os gritosque a alva cidade,de seu imerecido sono,desperta em pesadelos. E pedimosque as balas perdidaspercam o nosso rumoe não façam do corpo nosso,os nossos filhos, o alvo. O silêncio mordido,antes o pão trituradode nossos desejos,avoluma, avolumae a massa ganha por

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Todas as manhãs – Conceição Evaristo

Todas as manhãs acoito sonhose acalento entre a unha e a carneuma agudíssima dor. Todas as manhãs tenho os punhossangrando e dormentestal é a minha lidacavando, cavando torrões de terra,até lá, onde os homens enterrama esperança roubada de outros homens. Todas as manhãs junto ao nascente diaouço a minha voz-banzo,âncora dos navios de nossa memória.E

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Eu-Mulher – Conceição Evaristo

Uma gota de leiteme escorre entre os seios.Uma mancha de sangueme enfeita entre as pernas.Meia palavra mordidame foge da boca.Vagos desejos insinuam esperanças.Eu-mulher em rios vermelhosinauguro a vida.Em baixa vozviolento os tímpanos do mundo.Antevejo.Antecipo.Antes-vivoAntes – agora – o que há de vir.Eu fêmea-matriz.Eu força-motriz.Eu-mulherabrigo da sementemoto-contínuodo mundo. Conceição Evaristo Autor: Conceição Evaristo

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Frutífera – Conceição Evaristo

– Da solidão do fruto –De meu corpo ofereçoas minhas frutescências,casca, polpa, semente.E vazada de mim mesmacom desmesurada gulaapalpo-me em ofertaa fruta que sou. Mastigo-mee encontro o coraçãode meu próprio fruto,caroço aliciado,a entupir os vaziosde meus entrededos. – Da partilha do fruto –De meu corpo ofereçoas minhas frutescências,e ao leve desejo-roçarde quem me acolhe,entrego-me aos

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Malungo, brother, irmão – Conceição Evaristo

No fundo do calumbénossas mãos aindaespalmam cascalhosnem ouro nem diamanteespalham enfeitesem nossos seios e dedos. Tudo se foimas a cobradeixa o seu rastronos caminhos aonde passae a lesma lentaem seu passo-arrastolarga uma gosma douradaque brilha no sol. um dia antesum dia avantea dívida acumulae fere o tempo tensoda paciência gastade quem há muito espera. Os

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Meu rosário – Conceição Evaristo

Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falopadres-nossos e ave-marias.Do meu rosário eu ouço os longínquos batuquesdo meu povoe encontro na memória mal adormecidaas rezas dos meses de maio de minha infância.As coroações da Senhora, em que as meninas negras,apesar do desejo de coroar

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Pedra, pau, espinho e grade – Conceição Evaristo

“No meio do caminho tinha uma pedra”,Mas a ousada esperançade quem marcha cordilheirastriturando todas as pedrasda primeira à derradeirade quem banha a vida todano unguento da corageme da luta cotidianafaz do sumo beberragemtopa a pedra pesadeloé ali que faz paradapara o salto e não o recuonão estanca os seus sonhoslá no fundo da memória,pedra, pau,

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Eu-Mulher

Uma gota de leiteme escorre entre os seios.Uma mancha de sangueme enfeita entre as pernas.Meia palavra mordidame foge da boca.Vagos desejos insinuam esperanças.Eu-mulher em rios vermelhosinauguro a vida.Em baixa vozviolento os tímpanos do mundo.Antevejo.Antecipo.Antes-vivoAntes – agora – o que há de vir.Eu fêmea-matriz.Eu força-motriz.Eu-mulherabrigo da sementemoto-contínuodo mundo. Autor: Conceição Evaristo

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Fêmea-Fênix

Para Léa Garcia  Navego-me eu–mulher e não temo,sei da falsa maciez das águase quando o receiome busca, não temo o medo,sei que posso me deslizarnas pedras e me sair ilesa,com o corpo marcado pelo olorda lama. Abraso-me eu-mulher e não temo,sei do inebriante calor da queimae quando o temorme visita, não temo o receio,sei que

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Frutífera

– Da solidão do fruto –De meu corpo ofereçoas minhas frutescências,casca, polpa, semente.E vazada de mim mesmacom desmesurada gulaapalpo-me em ofertaa fruta que sou. Mastigo-mee encontro o coraçãode meu próprio fruto,caroço aliciado,a entupir os vaziosde meus entrededos. – Da partilha do fruto –De meu corpo ofereçoas minhas frutescências,e ao leve desejo-roçarde quem me acolhe,entrego-me aos

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Malungo, brother, irmão

No fundo do calumbénossas mãos aindaespalmam cascalhosnem ouro nem diamanteespalham enfeitesem nossos seios e dedos. Tudo se foimas a cobradeixa o seu rastronos caminhos aonde passae a lesma lentaem seu passo-arrastolarga uma gosma douradaque brilha no sol. um dia antesum dia avantea dívida acumulae fere o tempo tensoda paciência gastade quem há muito espera. Os

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Meu rosário

Meu rosário é feito de contas negras e mágicas.Nas contas de meu rosário eu canto Mamãe Oxum e falopadres-nossos e ave-marias.Do meu rosário eu ouço os longínquos batuquesdo meu povoe encontro na memória mal adormecidaas rezas dos meses de maio de minha infância.As coroações da Senhora, em que as meninas negras,apesar do desejo de coroar

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Pedra, pau, espinho e grade

“No meio do caminho tinha uma pedra”,Mas a ousada esperançade quem marcha cordilheirastriturando todas as pedrasda primeira à derradeirade quem banha a vida todano unguento da corageme da luta cotidianafaz do sumo beberragemtopa a pedra pesadeloé ali que faz paradapara o salto e não o recuonão estanca os seus sonhoslá no fundo da memória,pedra, pau,

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Todas as manhãs

Todas as manhãs acoito sonhose acalento entre a unha e a carneuma agudíssima dor. Todas as manhãs tenho os punhossangrando e dormentestal é a minha lidacavando, cavando torrões de terra,até lá, onde os homens enterrama esperança roubada de outros homens. Todas as manhãs junto ao nascente diaouço a minha voz-banzo,âncora dos navios de nossa memória.E

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