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Cultura – Arnaldo Antunes

O girino é o peixinho do sapo
O silêncio é o começo do papo
O bigode é a antena do gato
O cavalo é pasto do carrapato

O cabrito é o cordeiro da cabra
O pescoço é a barriga da cobra
O leitão é um porquinho mais novo
A galinha é um pouquinho do ovo

O desejo é o começo do corpo
Engordar é a tarefa do porco
A cegonha é a girafa do ganso
O cachorro é um lobo mais manso

O escuro é a metade da zebra
As raízes são as veias da seiva
O camelo é um cavalo sem sede
Tartaruga por dentro é parede

O potrinho é o bezerro da égua
A batalha é o começo da trégua
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura.

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


Nome – Arnaldo Antunes

algo é o nome do homem
coisa é o nome do homem
homem é o nome do cara
isso é o nome da coisa
cara é o nome do rosto
fome é o nome do moço
homem é o nome do troço
osso é o nome do fóssil
corpo é o nome do morto
homem é o nome do outro

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


Pedra de pedra de pedra – Arnaldo Antunes

pedra de pedra de pedra
o que a faz tão concreta
se não a falta de regra
de sua forma assimétrica
incapaz de linha reta?

talvez a sua dureza
que mão alguma atravessa
tateia mas não penetra
o amálgama dos átomos
no íntimo da molécula?

será por estar parada
em sua presença discreta
sobre o chão mimetizada
obstáculo na pressa
onde o cego pé tropeça?

pedra de pedra de pedra
impenetrabilidade
íntegra ilesa completa
igual na luz ou na treva
do Cáucaso ou da Sibéria

o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?

casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
apenas de si repleta

pedra de pedra de pedra
pousada em cima da terra
alheia à atmosfera
que a faz repousar pesada
no berço da sua inércia

com sua massa compacta
onde planta não prospera
e nem bactéria medra
sobre a crosta que o sol cresta
até seu nome empedra.

penha de penha de penha
fraga rocha roca brenha
por que se faz tão concreta?
por sua idade avançada
ou por rolar pela estrada?

talvez por estar inteira
entre uma e outra beira
de sua forma coesa
que se transforma em areia
quando o tempo a desintegra?

ou só porque não anseia
ser outra coisa e não esta?
nem pessoa nem floresta
nem mesmo a mera matéria
que a ideia não alcança?

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


O pulso – Arnaldo Antunes

O pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa…

Peste bubônica
Câncer, pneumonia
Raiva, rubéola
Tuberculose e anemia
Rancor, cisticercose
Caxumba, difteria
Encefalite, faringite
Gripe e leucemia…

E o pulso ainda pulsa
E o pulso ainda pulsa

Hepatite, escarlatina
Estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo
Esquizofrenia
Úlcera, trombose
Coqueluche, hipocondria
Sífilis, ciúmes
Asma, cleptomania…

E o corpo ainda é pouco
E o corpo ainda é pouco
Assim…

Reumatismo, raquitismo
Cistite, disritmia
Hérnia, pediculose
Tétano, hipocrisia
Brucelose, febre tifóide
Arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, cárie
Câimbra, lepra, afasia…

O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa
Ainda é pouco
Assim…

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


Nome não – Arnaldo Antunes

os nomes dos bichos não são os bichos
o bichos são:
macaco gato peixe cavalo
macaco gato peixe cavalo
vaca elefante baleia galinha

os nomes das cores não são as cores
as cores são:
preto azul amarelo verde vermelho marrom

os nomes dos sons não são os sons
os sons são

só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, som são
nome não, nome não
nome não, nome não

os nomes dos bichos não são os bichos
os bichos são:
plástico pedra pelúcia ferro
plástico pedra pelúcia ferro
madeira cristal porcelana papel

os nomes das cores não são as cores
as cores são:
tinta cabelo cinema sol arco-íris tevê

os nomes dos sons não são os sons
os sons são

só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, nome não
nome não, nome não
nome não, nome não

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


Os buracos do espelho – Arnaldo Antunes

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


Estamos sob o mesmo teto – Arnaldo Antunes

estamos sob o mesmo teto
secreto
onde o sol indesejável é barrado
eu e você
sob o mesmo nós
dois, sóis
sob o mesmo pôr
(o enigma do amor)
do sol
onde todo contorno finda
estamos
sob a mesma pálpebra
agora
já e ainda
intactos de aurora.

Arnaldo Antunes

Autor: Arnaldo Antunes


Os buracos do espelho

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar aqui
com um olho aberto, outro acordado
no lado de lá onde eu caí

pro lado de cá não tem acesso
mesmo que me chamem pelo nome
mesmo que admitam meu regresso
toda vez que eu vou a porta some

a janela some na parede
a palavra de água se dissolve
na palavra sede, a boca cede
antes de falar, e não se ouve

já tentei dormir a noite inteira
quatro, cinco, seis da madrugada
vou ficar ali nessa cadeira
uma orelha alerta, outra ligada

o buraco do espelho está fechado
agora eu tenho que ficar agora
fui pelo abandono abandonado
aqui dentro do lado de fora

Autor: Arnaldo Antunes


Estamos sob o mesmo teto

estamos sob o mesmo teto
secreto
onde o sol indesejável é barrado
eu e você
sob o mesmo nós
dois, sóis
sob o mesmo pôr
(o enigma do amor)
do sol
onde todo contorno finda
estamos
sob a mesma pálpebra
agora
já e ainda
intactos de aurora.

Autor: Arnaldo Antunes


Cultura

O girino é o peixinho do sapo
O silêncio é o começo do papo
O bigode é a antena do gato
O cavalo é pasto do carrapato

O cabrito é o cordeiro da cabra
O pescoço é a barriga da cobra
O leitão é um porquinho mais novo
A galinha é um pouquinho do ovo

O desejo é o começo do corpo
Engordar é a tarefa do porco
A cegonha é a girafa do ganso
O cachorro é um lobo mais manso

O escuro é a metade da zebra
As raízes são as veias da seiva
O camelo é um cavalo sem sede
Tartaruga por dentro é parede

O potrinho é o bezerro da égua
A batalha é o começo da trégua
Papagaio é um dragão miniatura
Bactérias num meio é cultura.

Autor: Arnaldo Antunes


Nome

algo é o nome do homem
coisa é o nome do homem
homem é o nome do cara
isso é o nome da coisa
cara é o nome do rosto
fome é o nome do moço
homem é o nome do troço
osso é o nome do fóssil
corpo é o nome do morto
homem é o nome do outro

Autor: Arnaldo Antunes


Não tem que

não tem que
nem precisa de
não tem que precisar de
nem precisa ter que
não tem que precisar ter que
nem precisa ter que precisar de

Autor: Arnaldo Antunes


Pedra de pedra de pedra

pedra de pedra de pedra
o que a faz tão concreta
se não a falta de regra
de sua forma assimétrica
incapaz de linha reta?

talvez a sua dureza
que mão alguma atravessa
tateia mas não penetra
o amálgama dos átomos
no íntimo da molécula?

será por estar parada
em sua presença discreta
sobre o chão mimetizada
obstáculo na pressa
onde o cego pé tropeça?

pedra de pedra de pedra
impenetrabilidade
íntegra ilesa completa
igual na luz ou na treva
do Cáucaso ou da Sibéria

o que a faz tão concreta
de pedra de pedra pedra?
será sua superfície
que expõe a mesma matéria
da entranha mais interna?

casca que continua
por dentro do corpo espesso
e encrua até o avesso
sem consistência secreta
apenas de si repleta

pedra de pedra de pedra
pousada em cima da terra
alheia à atmosfera
que a faz repousar pesada
no berço da sua inércia

com sua massa compacta
onde planta não prospera
e nem bactéria medra
sobre a crosta que o sol cresta
até seu nome empedra.

penha de penha de penha
fraga rocha roca brenha
por que se faz tão concreta?
por sua idade avançada
ou por rolar pela estrada?

talvez por estar inteira
entre uma e outra beira
de sua forma coesa
que se transforma em areia
quando o tempo a desintegra?

ou só porque não anseia
ser outra coisa e não esta?
nem pessoa nem floresta
nem mesmo a mera matéria
que a ideia não alcança?

Autor: Arnaldo Antunes


O pulso

O pulso ainda pulsa
O pulso ainda pulsa…

Peste bubônica
Câncer, pneumonia
Raiva, rubéola
Tuberculose e anemia
Rancor, cisticercose
Caxumba, difteria
Encefalite, faringite
Gripe e leucemia…

E o pulso ainda pulsa
E o pulso ainda pulsa

Hepatite, escarlatina
Estupidez, paralisia
Toxoplasmose, sarampo
Esquizofrenia
Úlcera, trombose
Coqueluche, hipocondria
Sífilis, ciúmes
Asma, cleptomania…

E o corpo ainda é pouco
E o corpo ainda é pouco
Assim…

Reumatismo, raquitismo
Cistite, disritmia
Hérnia, pediculose
Tétano, hipocrisia
Brucelose, febre tifóide
Arteriosclerose, miopia
Catapora, culpa, cárie
Câimbra, lepra, afasia…

O pulso ainda pulsa
E o corpo ainda é pouco
Ainda pulsa
Ainda é pouco
Assim…

Autor: Arnaldo Antunes


Nome não

os nomes dos bichos não são os bichos
o bichos são:
macaco gato peixe cavalo
macaco gato peixe cavalo
vaca elefante baleia galinha

os nomes das cores não são as cores
as cores são:
preto azul amarelo verde vermelho marrom

os nomes dos sons não são os sons
os sons são

só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, som são
nome não, nome não
nome não, nome não

os nomes dos bichos não são os bichos
os bichos são:
plástico pedra pelúcia ferro
plástico pedra pelúcia ferro
madeira cristal porcelana papel

os nomes das cores não são as cores
as cores são:
tinta cabelo cinema sol arco-íris tevê

os nomes dos sons não são os sons
os sons são

só os bichos são bichos
só as cores são cores
só os sons são
som são, nome não
nome não, nome não
nome não, nome não

Autor: Arnaldo Antunes