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Do azul, num soneto – Alphonsus de Guimaraens Filho

Verificar o azul nem sempre é puro.
Melhor será revê-lo entre as ramadas
E os altos frutos de um pomar escuro
— Azul de ténues bocas desoladas.

Melhor será sonhá-lo em madrugadas,
Claro, inconstante azul sempre imaturo,
Azul de claridades sufocadas
Latejando nas pedras — nascituro.

Não este azul, mas outro e dolorido,
Evanescente azul que na orvalhada
Ficou, pétala ingênua, torturada.

Recupero-o, sem ver, e ei-lo perdido,
Azul de voz, de sombra envenenada,
Que em nós se esvai sem nunca ter vivido.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “A cidade do sul”. Poesia. Coleção Marília de Dirceu, 1. Belo Horizonte: Movimento Editorial Panorama, 1948

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Eu só pergunto – Alphonsus de Guimaraens Filho

Vem de que latitude?
Que gestos tem? Que roupas
agita no seu corpo desconforme?
Que anéis brilham em seus dedos incompletos?
Que riso
frisa-lhe a boca alucinada? Vem
de que cidade
oculta além do vale? Quem por ela
terá chamado?
Que voz é essa que nem mais se entende?
Será ela que chega?
Será a que não tem pés, a que resolve
a escuridão, e ausculta
o segredo das plantas e de alguma
delas extrai esse cruel narcótico
que a todos nós nos cega e paralisa?
Ah, não me digam nada. Eu só pergunto.
Eu só pergunto porque me sufoco.
Mas não quero saber.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Poemas da ante-hora”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Nostalgia dos anjos – Alphonsus de Guimaraens Filho

País da sombra
Vem do olhar do morto,
Vem do olhar cerrado,
Vem da face extinta
Sob a noite grave,
O gemido suave,
Desumanízado.

Ah! é a melodia
Dos momentos frios,
Dos momentos velhos,
Desaparecidos.
Risos esquecidos,
Casarões vazios.

Vem do corpo em sombra
Uma saudade mansa.
Voz de outros desterros
Para além de nós.
Gritos de crianças
E as lembranças doídas
Para além de nós.
Canta, esquece, sonha.
Já nem tenho voz.

Ó pais da sombra,
Tremes tão distante,
Tão dentro de nós!
Vem o teu gemido
Das janelas curvas,
Das vielas ermas,
Das canções, da paz.
ó país da sombra,
Onde viverás?
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Poesias. Sonetos da ausência. Nostalgia dos anjos”. Coleção Autores Brasileiros, vol. 22. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1946.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Olhas o amanhecer – Alphonsus de Guimaraens Filho

Olhas o amanhecer,
vives o amanhecer como o único instante
em que o céu é entreaberto segredo de um deus mudo.

Espera: algo vai se revelar e deves estar pronto
para mergulhar teu sonho num poço de luz casta.

O intocado te espera. E amanhece. E te iluminas
como se trincasses com os dentes a polpa do absoluto.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Luz de Agora”. Rio de Janeiro: Editora Cátedra, 1991.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


O poeta e o poema – Alphonsus de Guimaraens Filho

Nenhum poema se faz de matéria abstrata.
É a carne, e seus suplícios,
ternuras,
alegrias,
é a carne, é o que ilumina a carne, a essência,
o luminoso e o opaco do poema.

Nenhum poema. Nenhum pode nascer do inexistente.
A vida é mais real que a realidade.
E em seus contrastes e sequelas, funda
um reino onde pervagam
não a agonia de um, não o alvoroço
de outro,
mas o assombro de todos num caminho
estranho
como infinito corredor que ecoa
passos idos (de agora,
e de ontem e de sempre),
passos,
risos e choros — num reino
que nada tem de utópico, antes
mais duro do que rocha,
mais duro do que rocha da esperança
(do desespero?),
mais duro do que a nossa frágil carne,
nossa atônita alma,
— duros pesar de seu destino, duros
pesar de serem só a hora do sonho,
do sofrimento,
de indizível espanto,
e por fim um silêncio que arrepia
a epiderme do acaso:
E por fim um silêncio… Nenhum poema
se tece de irreais tormentos. Sempre
o que o verso contém é um fluir de sangue
no coração da vida,
no pobre coração da vida, aqui
paralisado, além
nascente no seu ímpeto de febre,
no coração da vida,
no coração da vida,
(da morte?)
e um frio antigo, e as bocas
cerradas, olhos cegos,
canto urdido de cantos sufocados,
e uma avenida longa, longa, longa,
e a noite,
e a noite,
e, talvez, um sublime amanhecer.

(…)

Não há poema isento.
Há é o homem.
Há é o homem e o poema.
Fundidos.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Nó: poemas”. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1984.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Poema sonhado – Alphonsus de Guimaraens Filho

Se não for pela poesia, como crer na eternidade?
Os ossos da noite doem nos mortos.
A chuva molha cidades que não existem.
O silêncio punge em cada ser acordado pelos cães invisíveis [do assombro.

Os ossos da noite doem nos vivos.
A escuridão lateja como um seio.
E uma voz (de onde vem?) repete incessante, incessantemente:
Se não for pela poesia, como crer na eternidade?
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Poemas. Alphonsus de Guimaraens Filho”. [Organização de Afonso Henriques Neto]. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Pressentimento – Alphonsus de Guimaraens Filho

Teu frio; teu espanto; as sombras insensatas
cavalgando o silêncio; e a noite que não cessa.
De onde trouxeste a luz que, cálida, desatas
sobre a noite em que estás, que é só tua, não essa

em que nos vamos, nós, os que já nem te vemos?
Que mais queres, a pungir o silêncio terrível
em que, cegos, aos sóis temerários descemos?
Porque nos fazes ir numa nave invisível?

Teu frio, sim, teu frio, e teus olhos esquivos…
És como um desconhecido ora egresso de estranho
domínio, e ao te escutar os passos fugitivos
numa luz mais irreal que a luz em que me banho.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “O tecelão do assombro: poemas”. Alphonsus de Guimaraens Filho. [Organização de Afonso Henriques Neto]. Rio de Janeiro: Sette Letras, 2000.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


A todos os poetas – Alphonsus de Guimaraens Filho

A todos vós que um dia pressentistes
os passos alumbrados da poesia
na vossa alma soar — saudoso dia
que mais humanos, graves, e mais tristes

para sempre vos fez… A todos vós
que, amando, o amor sentistes impossível,
que, vendo o mundo, amastes o invisível,
e, ouvindo o canto, ouvistes nele a voz

de um reino imerso em névoa como clara
ilha na solidão… E deslumbrados
as palavras no vácuo erguestes para

reanimá-las e reacendê-las,
a todos vós o céu acolhe, consolados
pela luz da mais casta entre as estrelas.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Sonetos com dedicatória”. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Cantilena II – Alphonsus de Guimaraens Filho

A Mario Quintana

Mansa cantilena
num mundo que chora:
até me dá pena
te escutar agora.

Ao ouvir-te, tento
ir até ao fundo
de um deslumbramento
que ainda há no mundo

(pelo que segredas,
pelo que me falas),
tu que assim te quedas
em mim, se te calas,

— ai das cantilenas
num mundo de pranto! —
chama que asserenas
e em nós pões o encanto

de nem sei que dia
feito de inocência,
sopro de poesia
da mais pura ardência.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Nó: poemas”. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1984.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Deitas teu corpo em flor – Alphonsus de Guimaraens Filho

Deitas teu corpo em flor no campo claro
e toda ao sol te entregas, matinal.
Um perfume de luz se espalha qual
puro delírio, canto esquivo e raro.

Sorver o aroma, recolher o puro
estremecer de flor, ó pólen, ó mel
que irrompendo de tudo vibra em céu
de água a cair das coisas num futuro

instante de fantástica beleza
e de beijo e de afago e de um supremo
arfar de chama em límpida penugem.

Deitas teu corpo em flor, e a natureza
Funde-se em ti no alto silêncio extremo
de volúpia desfeita em brisa e nuvem.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Todos os Sonetos, Alphonsus de Guimarães Filho”. Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 1996.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho


Dos poemas – Alphonsus de Guimaraens Filho

Não de vento os formei, mas do meu barro.
Não lhes dei sentimento, mas meu sangue.
Acolhe-os, pois, ainda que sejam turvo
rio a cruzar as terras que erigiste
no teu sonho maior, mesmo que sejam
somente um vago eco, um arfar penoso
de barro, solidão, de cinza e sangue.
– Alphonsus de Guimaraens Filho, em “Poemas. Alphonsus de Guimaraens Filho”. [Organização de Afonso Henriques Neto]. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1998.

Alphonsus de Guimaraens Filho

Autor: Alphonsus de Guimaraens Filho