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Fragmento – Adélia Prado

Bem-aventurado o que pressentiu
quando a manhã começou:
não vai ser diferente da noite.
Prolongados permanecerão o corpo sem pouso,
o pensamento dividido entre deitar-se primeiro
à esquerda ou à direita
e mesmo assim anunciou o paciente ao meio-dia:
algumas horas e já anoitece, o mormaço abranda,
um vento bom entra nessa janela.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Casamento – Adélia Prado

Há mulheres que dizem:
Meu marido, se quiser pescar, pesque,
mas que limpe os peixes.
Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,
ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar.
É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha,
de vez em quando os cotovelos se esbarram,
ele fala coisas como “este foi difícil”
“prateou no ar dando rabanadas”
e faz o gesto com a mão.
O silêncio de quando nos vimos a primeira vez
atravessa a cozinha como um rio profundo.
Por fim, os peixes na travessa,
vamos dormir.
Coisas prateadas espocam:
somos noivo e noiva.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Dona Doida – Adélia Prado

Uma vez, quando eu era menina, choveu grosso
com trovoadas e clarões, exatamente como chove agora.
Quando se pôde abrir as janelas,
as poças tremiam com os últimos pingos.
Minha mãe, como quem sabe que vai escrever um poema,
decidiu inspirada: chuchu novinho, angu, molho de ovos.
Fui buscar os chuchus e estou voltando agora,
trinta anos depois. Não encontrei minha mãe.
A mulher que me abriu a porta riu de dona tão velha,
com sombrinha infantil e coxas à mostra.
Meus filhos me repudiaram envergonhados,
meu marido ficou triste até a morte,
eu fiquei doida no encalço.
Só melhoro quando chove.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Um jeito – Adélia Prado

Meu amor é assim, sem nenhum pudor.
Quando aperta eu grito da janela
— ouve quem estiver passando —
ô fulano, vem depressa.
Tem urgência, medo de encanto quebrado,
é duro como osso duro.
Ideal eu tenho de amar como quem diz coisas:
quero é dormir com você, alisar seu cabelo,
espremer de suas costas as montanhas pequenininhas
de matéria branca. Por hora dou é grito e susto.
Pouca gente gosta.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Janela – Adélia Prado

Janela, palavra linda.
Janela é o bater das asas da borboleta amarela.
Abre pra fora as duas folhas de madeira à-toa pintada,
janela jeca, de azul.
Eu pulo você pra dentro e pra fora, monto a cavalo em você,
meu pé esbarra no chão. Janela sobre o mundo aberta, por onde vi
o casamento da Anita esperando neném, a mãe
do Pedro Cisterna urinando na chuva, por onde vi
meu bem chegar de bicicleta e dizer a meu pai:
minhas intenções com sua filha são as melhores possíveis.
Ô janela com tramela, brincadeira de ladrão,
claraboia na minha alma,
olho no meu coração.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Com licença poética – Adélia Prado

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado pra mulher,
esta espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas, o que sinto escrevo. Cumpro a sina. Inauguro linhagens, fundo reinos
— dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida, é maldição pra homem.

Mulher é desdobrável. Eu sou.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Alfândega – Adélia Prado

O que pude oferecer sem mácula foi
meu choro por beleza ou cansaço,
um dente exraizado,
o preconceito favorável a todas as formas
do barroco na música e o Rio de Janeiro
que visitei uma vez e me deixou suspensa.
‘Não serve’, disseram. E exigiram
a língua estrangeira que não aprendi,
o registro do meu diploma extraviado
no Ministério da Educação, mais taxa sobre vaidade
nas formas aparente, inusitada e capciosa — no que
estavam certos — porém dá-se que inusitados e capciosos
foram seus modos de detectar vaidades.
Todas as vezes que eu pedia desculpas diziam:
‘Faz-se de educado e humilde, por presunção’,
e oneravam os impostos, sendo que o navio partiu
enquanto nos confundíamos.
Quando agarrei meu dente e minha viagem ao Rio,
pronto a chorar de cansaço, consumaram:
‘Fica o bem de raiz pra pagar a fiança’.
Deixei meu dente.
Agora só tenho três reféns sem mácula.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


Momento – Adélia Prado

Enquanto eu fiquei alegre,
permaneceram um bule azul com um descascado no bico,
uma garrafa de pimenta pelo meio,
um latido e um céu limpidíssimo
com recém-feitas estrelas.
Resistiram nos seu lugares, em seus ofícios,
constituindo o mundo pra mim, anteparo
para o que foi um acometimento:
súbito é bom ter um corpo pra rir
e sacudir a cabeça. A vida é mais tempo
alegre do que triste. Melhor é ser.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado


A formalística – Adélia Prado

O poeta cerebral tomou café sem açúcar
e foi pro gabinete concentrar-se.
Seu lápis é um bisturi
que ele afia na pedra,
na pedra calcinada das palavras,
imagem que elegeu porque ama a dificuldade,
o efeito respeitoso que produz
seu trato com o dicionário.
Faz três horas que já estuma as musas.
O dia arde. Seu prepúcio coça.

Adélia Prado

Autor: Adélia Prado