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Procissão – Adão Ventura

Gente

de velas

na mão

vela-se

ao santo.

entre as

curvas

das ruas

curva-se

ao santo.

no dobrar

das esquinas

dobram-se

ao santo

os joelhos genuflexos

e puros para o milagre.

– Adão Ventura, em “Jequitinhonha: poemas do Vale”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1980,  p. 27.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Dois – Adão Ventura

de pés no chão

palmilhei duros eitos

movidos a chuva e sol.

de pé no chão

atravessei frios ghetos

de duras cicatrizes.

de pés no chão

Teodoro, meu avô 

envelheceu mansamente

as suas mãos escravas.

– Adão Ventura, em “Cor da pele”. 5ª ed., Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Quilombo – Adão Ventura

mundo onde me fecho
eu-zumbi
caçador de capitão do mato,
traço tudo no tiro

e asso em coivaras
– Adão Ventura, em “Texturaafro”. Belo Horizonte: Editora Lê, 1992.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Flash back – Adão Ventura

áfricas noites viajadas em navios

e correntes,

imprimem porões de amargo sal

no meu rosto,

construindo paredes

de antigas datas e ferrugens,

selando em elos e cadeias,

o mofo de velhos rótulos deixados

no puir dos olhos.

– Adão Ventura, em “Costura de nuvens” (Antologia poética).. [organização e seleção Jaime Prado Gouvêa e Sebastião Nunes]. Sabará, MG: Edições Dubolsinho, 2006.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Senzala – Adão Ventura

senzala
é minha carne retalhada
pelo dia-a-dia

senzala
é a sombra que tenho aprisionada
nos ghetos da minha pele.
– Adão Ventura, em “A cor da pele”. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1980.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Iam – Adão Ventura

não sei não. mas aqui a gente

conversa assuntos

que na Capital necas /nadas

lá é aquela gente correndo

— corredeira sem-fim

pra qualquer decá aquela palha.

– Adão Ventura, em “Jequitinhonha: poemas do Vale”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1980, p. 45. 

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Três – Adão Ventura

o meu sangue-cachoeira

é terreiro de folia,

dor jogada ao vento,

cachaça engolida inteira,

sapateio de meia-noite,

noite de São João,

-jogo de cartas,

conversas de preto velho.

– Adão Ventura, em “Cor da pele”. 5ª ed., Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988. 

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Limite – Adão Ventura

e quando a palavra

apodrece

num corredor

de sílabas ininteligíveis.

e quando a palavra

mofa

num canto-cárcere

do cansaço diário.

e quanto a palavra

assume o fosco

ou o incolor da hipocrisia.

e quando a palavra

é fuga

em sua própria armadilha.

e quando a palavra

é furada

em sua própria efígie.

a palavra

sem vestimenta,

nua,

desincorporada.

– Adão Ventura, em “Costura de nuvens” (Antologia poética).. [organização e seleção Jaime Prado Gouvêa e Sebastião Nunes]. Sabará, MG: Edições Dubolsinho, 2006

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Um – Adão Ventura

em negro

teceram-me a pele.

enormes correntes

amarraram-me ao tronco

de uma Nova África.

carrego comigo

a sombra de longos muros

tentando me impedir

que meus pés

cheguem ao final

dos caminhos.

mas o meu sangue

está cada vez mais forte,

tão forte quanto as imensas pedras

que os meus avós carregaram

para edificar os palácios dos reis. 

– Adão Ventura, em “Cor da pele”. 5ª ed., Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Minha avó – Adão Ventura

vovó justina

preta minas

preta mina

preta forra

preta de forno

& fogão.

vovó justina

preta forró

preta mucama

preta de cama

& cambão.

– Adão Ventura, em “A cor da pele”. Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988. 

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Zumbi – Adão Ventura

Eu-Zumbi

Rei de Palmares

tenho terreiros e tambores

e danço a dança do Sol.

Eu-Zumbi enfrento o vento

que ainda tarda

dessas cartas de alforria.

Eu-Zumbi jogo por terra

a caneta de ouro

de todas as Leis-Áureas.

Eu-Zumbi

Rei de Palmares

Tenho terreiros

e tambores

e danço a dança do Sol

– Adão Ventura, em “Costura de nuvens” (Antologia poética).. [organização e seleção Jaime Prado Gouvêa e Sebastião Nunes]. Sabará, MG: Edições Dubolsinho, 2006.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Natal II – Adão Ventura

Um menino lerdo

num lençol de embira

mesmo qu’uma fonte

de estimada ira.

um menino lama

num anzol que fira

algum porte e corpo

e alma de safira.

um menino cápsula

de tesoura e crina

– ritual de crisma

sem fé ou parafina.

um menino-corpo

de machado e chão

a arrastar cueiros

de chistes e trovão

– Adão Ventura, em “Jequitinhonha: poemas do Vale”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1980.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Negro forro – Adão Ventura

Minha carta de alforria

Não me deu fazendas,

Nem dinheiro no banco,

Nem bigodes retorcidos.

Minha carta de alforria

Costurou meus passos

Aos corredores da noite de minha pele.

– Adão Ventura, em “Os cem melhores poemas brasileiros do século”. [organização Ítalo Moriconi]. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 275.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Paisagem do Jequitinhonha – Adão Ventura

Quem dança no vento

                     no ventre das águas

                     do Jequitinhonha?

Quem percorre o leve

                      de breves passos

nas margens do Araçuaí?

Quem detém dos pássaros

                      o ziguezaguear de vôos

                      recompondo sombras

                      sobre lixívias e lavras

                      de Chapada do Norte?

Quem imprime

                   em argila

                   a singeleza dos gestos

                   dos artesãos de Minas Novas?

– Adão Ventura, em “Jequitinhonha: poemas do Vale”. Belo Horizonte: Imprensa Oficial do Estado de Minas Gerais, 1980.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Papai-moçambique – Adão Ventura

papai-moçambique
-viola e sapateio
-desafio de versos
fogosos.
papai-moçambique
senta pé na fogueira
&
de um salto
pára o olho
no ar
banzando saudades
d´outras Áfricas.
– Adão Ventura, em “Cor da pele”. 5ª ed., Belo Horizonte: Edição do Autor, 1988. 

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura


Para um negro – Adão Ventura

para um negro

a cor da pele

É uma sombra

muitas vezes mais forte

que um soco

para um negro

a cor da pele

É uma faca

que atinge

muito mais em cheio

o coração

– Adão Ventura, em “Costura de nuvens” (Antologia poética).. [organização e seleção Jaime Prado Gouvêa e Sebastião Nunes]. Sabará, MG: Edições Dubolsinho, 2006.

Adão Ventura

Autor: Adão Ventura