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Fantasmas – Adalgisa Nery

Lívidos fantasmas deslizam nas horas perdidas 

Chegam à minha alma 

E como sombras da noite 

Levantam os meus ímpetos mortos 

Desatando as ligaduras do tempo. 

O luar da madrugada fria cai no meu rosto 

E ilumina com branda amargura 

O meu espírito que espera a hora insolúvel. 

Os caminhos cobrem-se de homens que dormem na morte 

E cresce no meu coração um desejo incontido 

Para uma união mais forte, mais intensa e mais perfeita. 

A minha pupila é banhada pela enorme lágrima 

Que umedecerá o solo castigado. 

A lágrima que levará ternura às existências sofridas, 

A lágrima que se mudará em sangue, 

Que levantará a vida morta do universo! 

– Adalgisa Nery, in: Cantos da Angústia, 1948.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Solidão – Adalgisa Nery

O espírito da tempestade que executa a minha palavra

Partiu

E minha forma assim abandonada

Caiu.

Vieram depois a aflição e a agonia

E cresceram em mim

Como a aurora e o dia.

E se eu quisesse contar, homens irmãos,

Desde quando meu coração está isento de alegria,

Acreditem,

Não poderia.

Há muitos séculos mora em mim

Uma noite muito escura, muito fria.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Instante – Adalgisa Nery

O espanto abriu meu pensamento

Com idioma vindo do delírio,

Dos receios indefesos, dos louvores sem raízes,

No perdão oferecido sem razão.

O espanto abriu meu pensamento

Na noite carregada de lamentos

Em linguagem universal

Fluindo do eco perdido

Com passos de presságio amanhecendo.

Corpos florindo na pele da terra

Acendendo vida nas rosas e nos vermes,

Aumentando a potência do limo,

Preparando a primavera nos campos,

Ventres irrigando secas raízes,

Cogumelos róseos crescendo

Na umidade das faces.

Coagulação de prantos na semente

Das constelações adivinhadas.

E no faminto inconsciente, o tempo

Sorvendo com fúria o seu sustento

No insondável silêncio de mim mesma.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Ternura – Adalgisa Nery

Antes que eu me transforme em água

E corra com os rios

Cantando para as florestas escuras

A canção sublime

Deixa-me contemplar tua face amada

Para que a canção se eternize.

Antes que os meus olhos se transformem

nos minúsculos vermes

Que movimentam o solo

Deixa-me receber a luz de tua boca

Para que eu me ilumine como as estrelas

No infinito da noite.

Antes que minhas mãos se mudem nas pedras das montanhas

Por onde caminharão os jovens pastores

Deixa-me afagar teus cabelos

Para que meu carinho se transforme na brisa

Que beija os grandes trigais.

Antes que minha forma sirva junto às raízes

Para amadurecer os frutos

Guarda-me na música de teu corpo

Para que o mistério do amor

Baixe sobre o universo

E banhe os espíritos perturbados.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Mulher – Adalgisa Nery

Na face, a geografia da angústia,

Dos pânicos e das medrosas alegrias.

Cada ruga é um presságio.

E auréola da aflição constante

O esplendor dos cabelos brancos.

Uma só raiz para frutos diversos,

Uma só vida para destinos tão complexos,

Um só pranto para dores tão diversas.

O útero que gera o herói, o sábio, o poeta,

O santo, o miserável e o assassino.

Uma só raiz para frutos tão diversos!

O dom da paz em cada gesto

Cai como noites quietas

Sobre a alma em rancor,

Amor acima do amor.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Vivência – Adalgisa Nery

Começamos a viver

Quando saímos do sono da existência,

Quando as distâncias se alongam nas partículas do corpo.

Começamos a viver

Quando confusos e sem consolo

Não sentimos os traços do irmão perdido.

Quando antes da força

Surge a sombra do insignificante.

Quando o sono é transformado em sonhos superados,

Quando o existir não é contradição.

Começamos a viver

Quando percebemos a mutação das células,

Quando fugimos de dentro de nós mesmos

E escondemos a nossa carne num caramujo oco.

Quando o espírito falsificado esquece

As tortuosas estradas

E quando deixamos de ser escaravelhos laboriosos.

Começamos a viver

Quando velamos além do sono

A vida irreal dos nossos passos.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Nostalgia do impreciso – Adalgisa Nery

Ao fechar de olhos para o sono

Aromas de pânico e de dores,

Aromas de errantes chuvas

Transportando montanhas, vales,

Atravessando ventos,

Pousando em instantes tão diversos,

Chamando medos

E exílios de vontades.

Aromas vasculhando a vida,

Engendrando noites no vazio,

Escapando de raízes em tumulto,

De pedras milenares em silêncio,

E de símbolos sem forma

Nascidos de pensamentos mutilados.

Aromas de carne e flor,

De chão e fonte,

De gestos tatuados no espaço,

De galeras rumo ao centro-mar

Em busca de estrelas excedentes

Aromas de grão e de criança

Cobrindo as coisas repetidas,

Fazendo-se pólen no infinito virgem.

Aroma-plasma de invitações

Ao canto, à flor, ao pranto,

Ao entrelaçamento de mãos desprotegidas

No temor de quedas sinuosas.

Ao fechar de olhos para o sono

Aromas de mistério,

Fracas luzes se abrindo

No mundo de silêncios e de símbolos

Dando vida à vida que vai fugindo.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


O país do poeta – Adalgisa Nery

A paisagem tem cores do avêsso

E as estrelas sobem pelas montanhas como veias

Aguando um seio de mulher.

As quatro línguas do vento

Conversam sobre o amor, o ódio, a vida e a morte.

Os arcanjos cruzam o firmamento de lado a lado,

Os pássaros soluçam como inconsoláveis viúvas.

Os peixes cantam como rouxinóis nas ramas floridas.

Um sirena lamenta-se no corte da noite

E o ruído de possantes motores trepidam o eixo universal

Como o nascimento de um vulcão.

As flores dos jardins cercados são orvalhadas como lágrimas inocentes

E da lua de São Jorge montado no seu cavalo branco

Para velar os mortos e os desesperados.

Um sentimento de pureza sobre o olhar dos arrependidos,

As mães alimentam seus filhos com flores,

Os amantes realizam a interpenetração das almas

E seus corações caem no chão como punhados de cinza.

A tragédia vive entre a boca dos velhos e o olhar do recém-nascido

E o choro do que um dia será assassino é ouvido ao ventre da noite.

O poeta escreve poemas no solo

E a terra grávida recompensa com flores, frutos e nascentes.

Na hora da penumbra abre-se uma grande boca no firmamento

Dizendo sobre o juízo final.

Sob a luz da lua o poeta colhe os lírios entreabertos

E sai guarnecendo sepulturas de noivas ignoradas.

Um resplandecente globo ocular

Desce sobre a paisagem

E procura encontra a Amada e a Morte.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Eu te amo !!! – Adalgisa Nery

Eu te amo

Antes e depois de todos os acontecimentos

Na profunda imensidade do vazio

E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo

Em todos os ventos que cantam,

Em todas as sombras que choram,

Na extensão infinita do tempo

Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo

Em todas as transformações da vida,

Em todos os caminhos do medo,

Na angústia da vontade perdida

E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo

Em tudo que estás presente,

No olhar dos astros que te alcançam

Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo

Desde a criação das águas,

desde a idéia do fogo

E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente

Desde a grande nebulosa

Até depois que o universo cair sobre mim

Suavemente.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Paisagem – Adalgisa Nery

Restam nos meus olhos

Séculos de planícies áridas

E o vento ríspido que trouxe as lamentações

Das sombras agitadas

Sobre os pântanos desconhecidos

Distantes estão os caminhos

Onde eu encontraria a suprema fraqueza

Para vergar os meus joelhos

E deitar no pó a minha boca moribunda

Invisíveis estão as estrelas

Que me levariam a contemplar os céus abençoados.

E só espaços sem medida

Onde a música da noite

É livre sobre os pensamentos em sono.

Desconhecida para mim a praia onde eu me deitaria

De olhos cerrados e sentiria

O último movimento da onda

Balançar os meus pés

Como as algas sem direção.

Como os detritos rejeitados pela pureza do mar.

Restam dentro da minha sombra

Fragmentos de agitações de outras vidas

Plantadas no meu grito de revolta

Que eu não libertarei

Até que no deserto universal

A flor de um cardo movimente

A paisagem silenciosa.

– Adalgisa Nery, in: Cantos da Angústia, 1948.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Poema natural – Adalgisa Nery

Abro os olhos, não vi nada

Fecho os olhos, já vi tudo.

O meu mundo é muito grande

E tudo que penso acontece.

Aquela nuvem lá em cima?

Eu estou lá,

Ela sou eu.

Ontem com aquele calor

Eu subi, me condensei

E, se o calor aumentar, choverá e cairei.

Abro os olhos, vejo um mar,

Fecho os olhos e já sei.

Aquela alga boiando, à procura de uma pedra?

Eu estou lá,

Ela sou eu.

Cansei do fundo do mar, subi, me desamparei.

Quando a maré baixar, na areia secarei,

Mais tarde em pó tomarei.

Abro os olhos novamente

E vejo a grande montanha,

Fecho os olhos e comento:

Aquela pedra dormindo, parada dentro do tempo,

Recebendo sol e chuva, desmanchando-se ao vento?

Eu estou lá,

Ela sou eu.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Poema da amante – Adalgisa Nery

Eu te amo

Antes e depois de todos os acontecimentos

Na profunda imensidade do vazio

E a cada lágrima dos meus pensamentos.

Eu te amo

Em todos os ventos que cantam,

Em todas as sombras que choram,

Na extensão infinita do tempo

Até a região onde os silêncios moram.

Eu te amo

Em todas as transformações da vida,

Em todos os caminhos do medo,

Na angústia da vontade perdida

E na dor que se veste em segredo.

Eu te amo

Em tudo que estás presente,

No olhar dos astros que te alcançam

Em tudo que ainda estás ausente.

Eu te amo

Desde a criação das águas,

desde a idéia do fogo

E antes do primeiro riso e da primeira mágoa.

Eu te amo perdidamente

Desde a grande nebulosa

Até depois que o universo cair sobre mim

Suavemente.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Pensamentos que reúnem um tema – Adalgisa Nery

Estou pensando nos que possuem a paz de não pensar,

Na tranqüilidade dos que esqueceram a memória

E nos que fortaleceram o espírito com um motivo de odiar.

Estou pensando nos que vivem a vida

Na previsão do impossível

E nos que esperam o céu

Quando suas almas habitam exiladas o vale intransponível.

Estou pensando nos pintores que já realizaram para as multidões

E nos poetas que correm indefinidamente

Em busca da lucidez dos que possam atingir

A festa dos sentidos nas simples emoções.

Estou pensando num olhar profundo

Que me revelou uma doce e estranha presença,

Estou pensando no pensamento das pedras das estradas sem fim

Pela qual pés de todas as raças, com todas as dores e alegrias

Não sentiram o seu mistério impenetrável,

Meu pensamento está nos corpos apodrecidos durante as batalhas

Sem a companhia de um silêncio e de uma oração,

Nas crianças abandonadas e cegas para a alegria de brincar,

Nas mulheres que correm mundo

Distribuindo o sexo desligadas do pensamento de amor,

Nos homens cujo sentimento de adeus

Se repete em todos os segundos de suas existências,

Nos que a velhice fez brotar em seus sentidos

A impiedade do raciocínio ou a inutilidade dos gestos.

Estou pensando um pensamento constante e doloroso

E uma lágrima de fogo desce pela minha face:

De que nada sou para o que fui criada

E como um número ficarei

Até que minha vida passe.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Poema de amor – Adalgisa Nery

Ouve-me com teus olhos

Porque minha queixa é muda.

Acaricia-me com teu pensamento

Porque meu corpo está imóvel.

Beija-me com tuas mãos

Porque minha boca te espera.

Fala-me com o silêncio dos momentos de amor

Porque os ouvidos da minha vida

Se abrirão como as flores

Na úmida e infinita madrugada.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Eterno tédio – Adalgisa Nery

Muitas vezes esgotando o meu destino

Com o olhar em pranto

E o coração pungente como um dobrar de sino,

Ouço ruídos seculares que unem como um canto,

Crescendo de intensidade,

Mergulhando os meus sentidos

Na maior profundidade!

Muitas vezes, considerando a vida

Com desumana indiferença,

Por toda a esperança perdida,

Pelo abrir de um riso, por todo o bem, por toda a crença,

Sinto o meu viver humilhado,

Vejo o meu nada quase demasiado,

Que nem chega a ser pecado.

E o tédio em toda a amplidão

Cai sobre mim.

– Adalgisa Nery, in: Revista Atlântico – Revista Luso-brasileira, n 1, Primavera de 1942.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Poema essencialista – Adalgisa Nery

Sinto o conteúdo da existência.

Procuro ultrapassá-lo com enorme exaltação poética,

Rompo as grades do mundo com o espetáculo das formas,

Dos sons e das cores.

Tudo me afoga em nostalgia de outras eras,

De outras vidas que cristalizaram

As tendências da minha infância.

A utilização das coisas plásticas

Altera o equilíbrio da visão.

Distribuo pelos quatro cantos do meu espírito

A essência imortal.

Fragmento seguidamente o meu interior

Fazendo doações físicas.

Dentro do meu limite há montões de estrelas apagadas,

Pensamentos que não andaram

Senão com o sopro de Deus.

Quero destruir para tentar construir.

A criação vive no ângulo do meu cérebro

Mas sei que serei vencida

Pela limitação das realizações humanas.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Escultura – Adalgisa Nery

Eu já te amava pelas fotografias.

Pelo teu ar triste e decadente dos vencidos,

Pelo teu olhar vago e incerto

Como o dos que não pararam no riso e na alegria.

Te amava por todos os teus complexos de derrota,

Pelo teu jeito contrastando com a glória dos atletas

E até pela indecisão dos teus gestos sem pressa.

Te falei um dia fora da fotografia

Te amei com a mesma ternura

Que há num carinho rodeado de silêncio

E não sentiste quantas vezes

Minhas mãos usaram meu pensamento,

Afagando teus cabelos num êxtase imenso.

E assim te amo, vendo em tua forma e teu olhar

Toda uma existência trabalhada pela força e pela angústia

Que a verdade da vida sempre pede

E que interminavelmente tens que dar!…

– Adalgisa Nery, in: Mulher Ausente, 1940.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Poema simples – Adalgisa Nery

Deixa-me recolher as rosas que estão morrendo nos jardins da noite,

Deixa-me recolher o fruto antes que este volva as raízes da terra,

Deixa-me recolher a estrela úmida

Antes que sua luz desapareça na madrugada,

Deixa-me recolher a tristeza da alma

Antes que a lágrima banhe a pálpebra

Do órfão abandonado e faminto,

Deixa-me recolher a ternura parada

No coração da mulher que desejou ser mãe.

Deixa-me recolher a esperança dos que acreditam,

Recolher o que ainda não passou

E mais do que tudo dá-me a recolher

A palavra de amor e de doçura para que reparta

Com os ouvidos que esperam como uma gota de mel

Caindo na alma e no coração,

Como a única luz dentro de tanta escuridão.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Eu em ti – Adalgisa Nery

Desejaria estar contigo quando eras no pensamento de Deus,

Quando tua mãe te concebeu e te alimentou com sua vida,

Desejaria estar contigo na primeira vez que distinguiste as formas,

[as cores e os sons,

Na tua primeira lágrima eu quisera estar contigo e assim na tua

[primeira alegria,

Desejaria estar contigo na tua infância e na tua adolescência,

[acompanhando as transformações do teu físico.

Ao teu lado desejaria estar quando, do teu corpo, constataste as

[primeiras células reprodutoras.

No teu primeiro pudor e no teu primeiro carinho eu quisera estar

[a teu lado,

Desejaria estar contigo na noite de tuas núpcias e no momento em

[que te uniste a outra mulher com o

[pensamento no teu primeiro filho.

Desejaria estar contigo no primeiro vestígio de tua velhice

E ainda desejaria estar contigo no momento da separação de

[tua alma,

Na decomposição de tuas carnes, do teu cérebro, de tua boca,

[do teu sexo,

Para poder continuar contigo, no mundo sem espaço e sem tempo.

– Adalgisa Nery, in: Mundos oscilantes, 1962, p.9.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Silêncio – Adalgisa Nery

Nas mãos inquietas

Cansadas esperanças

Tateando formas na luz ausente,

Nos olhos embrumados

A viva cruz do alívio,

Na boca imobilizada

A palavra amortalhada.

E à tona da fugaz realidade

O mistério das surpresas superadas.

Paisagem de espaços, e fantasmas

Ordenam não falar, não morrer,

Ouvir sem conduzir o pensamento,

Viver os vazios lúcidos

Entre a palavra e o som

Do coração a bater.

Resta apenas a flutuação ociosa

Livre das coisas da memória, da discordância

Das idéias obsessivas

Que escondidas estavam

Como fantásticos tesouros

Em frágeis e indefesas mãos.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Cemitério Adalgisa – Adalgisa Nery

Moram em mim 
Fundos de mares, estrelas-d′alva, 
Ilhas, esqueletos de animais, 
Nuvens que não couberam no céu, 
Razões mortas, perdões, condenações, 
Gestos de amparo incompleto, 
O desejo do meu sexo 
E a vontade de atingir a perfeição. 
Adolescências cortadas, velhices demoradas, 
Os braços de Abel e as pernas de Caim. 
Sinto que não moro. 
Sou morada pelas coisas como a terra das sepulturas 
É habitada pelos corpos. 
Moram em mim 
Gerações, alegrias em embrião, 
Vagos pensamentos de perdão. 
Como na terra das sepulturas 
Mora em mim o fruto podre, 
Que a semente fecunda repetindo a vida 
No sereno ritmo da Origem. Vida e morte, 
Terra e céu, Podridão, germinação, 
Destruição e criação. 
– Adalgisa Nery, in: Poemas, 1937.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Anseio – Adalgisa Nery

Quero que desça sobre mim a grande sombra que alivia,

Aquela que arranca do meu coração a revolta que me impede de ser mansa.

Quero descansar…

Quero encontrar aquele que é mais belo que o sol,

Que aumenta o meu sofrimento e que ajuda na minha redenção,

Que reparte suas angústias comigo para que lhe sirva de auxílio.

Quero ouvir a sua voz que é como a música dos mares,

Quero acolher-me na sua sombra e abraçar-me aos seus joelhos…

Quero descansar sem demora…

Quero chegar o tempo da minha última lágrima

ser recolhida dos meus olhos pisados e saudosos

Por aquele que é o molde dos poetas, o que se veste com as estrelas que meus olhos

ainda não vêem.

– Adalgisa Nery, in: Dom Casmurro, Rio de Janeiro, 19 ago. 1937, p. 2.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Estigma – Adalgisa Nery

Não receio que partas para longe,

Que faças por fugir, por te livrares

Da força da minha voz

E da compreensão do meu olhar.

Não temo que os mares te levem

No bojo dos transatlânticos

Nem tampouco me amedronta

Que em possantes aviões

No céu e na terra,

Em todos os seres me encontrarás

Cortes espaços sem conta.

Serena ficarei se disseres

Que na certa me olvidarás

No ventre da mata virgem,

Nas areias dos desertos

Ou no amor de outras mulheres que terás.

Não importa.

Nada temo e desejo mesmo que o faças

Para que saibas o quanto estou em teus sentidos

E que a minha forma, o meu espírito

Jamais da tua existência passa.

Se fugires pelos mares

Tu me veras na espuma leve da onda,

Me sentiras no colorido de um peixe

E a minha voz escutaras dentro de uma concha.

Se partires pelos ares,

Certamente na brancura de uma nuvem

Tu sentirás a maciez e a alvura

Das minhas carnes.

Se fores para a floresta

Hás de me ver

Na árvore mais florida e harmoniosa

Atravessando areias cálidas do deserto.

Sei que trocarias o lenitivo de um oásis

Pela certeza de me teres perto.

E nas mulheres que encontrares,

Dos seios o perfume, das nucas a palidez,

Das ancas as curvas

E das peles a cor e a tepidez,

Fica certo, não te evadirás.

Porque desde a tua sombra

Ao teu mais rápido pensamento

Não serás livre de mim

Num um momento.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Aspiração – Adalgisa Nery

Antes que vingue outra esperança

Quero as sombras do branco espesso.

Antes que mais uma insônia se cumpra

Quero o torpor no abismo indecifrável

Do espírito amortalhado.

Antes que o pensamento acorde

E descubra os espaços petrificados,

Quero narcotizar-me sem sonhos

E deitar-me no mundo sem sombras,

Sem palavras nem gestos.

Antes que alguma crença me recolha,

Antes que eu entenda o obscuro,

Antes que o sensível me assalte,

Antes que eu distinga na lonjura

A morte da estrela cintilante,

O êxtase da solidão vertical,

Quero ser coisa sem motivo

Entregue aos ventos sem destino.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


A um homem – Adalgisa Nery

Quando numa rocha porosa

Cansado te encostares

E dela vires surgir a umidade e depois a gota,

Pensa, amado meu, com carinho,

Que aí esta a minha boca.

Se teus olhos ficarem nas praias

E vires o mar ensalivando a areia

Com alegria pensa amado meu

Num corpo feliz

Porque é só teu.

Se descansares sob uma arvore frondosa

E além da sombra ela te envolver de ar resinoso

Lembra-te com entorpecência amado meu,

Da delicia do meu ventre amoroso.

Quando olhares o céu

E vires a andorinha tonta na amplidão

Pensa amado meu que assim sou eu

Perdida na infindável solidão.

A noite quando as trevas chegarem

E vires do firmamento

Uma estrela cair e se afundar

É sinal amado meu

Que o teu amor vai me abandonar.

Na morte, quando perderes o último sentido

E a tua própria voz

Em forma de pensamento

Te subir ao ouvido

Deixa escorrer a derradeira lagrima pelo teu rosto

Nascida do extremo alento do coração

E pensa então amado meu

Que ainda é um suave carinho da minha mão!

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


A paisagem de manhã – Adalgisa Nery

Ânsia de paz de noites desertas,

Desejo de sentir o tranquilo positivo

Nas intenções indevassáveis,

Na voz acima de todos os sons,

Acima do estrondo universal da bomba fratricida.

Ânsia de repouso final

No exaspero de mãos unidas pelo medo,

Pânicos imprevistos

Calando todos os instantes, todas as idades,

Chorando o nosso jamais.

Olhos outrora amigos

Impercebem em pastoso sangue.

Que gerações sofridas surgirão

Na espessa aflição de tão grandes mares

De ódio, ambição, vingança

Agora vêm dos ossos à procura do sexo,

Fúria de possessão inexplicável

Invade o campo de alheias propriedades

Lavradas no crime

E plantadas por tiranas mãos,

Heróis do século repetindo o que os outros foram.

Energias, vidas, mocidades

Flutuando sem rumo nas glórias e nas medalhas

Da nação em queda vertical solo abaixo

Cérebros falidos comandando existências em floração,

Numerando interminável esteira

De vassalos de línguas arrancadas.

Braços sem dono, ventres desapropriados,

Espíritos transformados em detritos pestilentos

Alimentam o tétrico destino

Da técnica contra o homem.

As estradas já não pertencem aos pés mansos,

O veio da riqueza, em mãos feudais.

No paralelo de horizonte sombrio

Levanta-se o vulcão que derrubará presídios e asilos

Para criar o grande rio de mortos putrefatos.

Não haverá tropas guerreiras contra ninguém

Apenas climas não sentidos dentro de atmosferas mortas

Desprezadas pelo vento livre.

E no âmago do âmago

O pranto medroso da futura criança

Presa ao ventre da terra,

E a revolta do jovem mudo,

São figuras oscilando nas trevas da Criação.

No profundo dos tempos

A ordem técnica recua medrosa,

Ouve o grito severo

Trazido pelo ar que balançou os corpos enforcados.

No fim, o estupro de cada homem

Violentado pela técnica

Dos inventos de guerra.

Em torno de todas as mortes

A vida, em minúsculas centelhas,

Forçará as trevas

Que cobrem o homem eternamente insepulto.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Repouso – Adalgisa Nery

Dá-me tua mão

E eu te levarei aos campos musicados pela canção das colheitas

Cheguemos antes que os pássaros nos disputem os frutos,

Antes que os insetos se alimentem das folhas entreabertas.

Dá-me tua mão

E eu te levarei a gozar a alegria do solo agradecido,

Te darei por leito a terra amiga

E repousarei tua cabeça envelhecida

Na relva silenciosa dos campos.

Nada te perguntarei,

Apenas ouvirás o cantar das águas adolescentes

E as palavras do meu olhar sobre tua face muito amada.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


A poesia se esfrega nos seres e nas cousas – Adalgisa Nery

Nunca sentiste uma força melodiosa
Cercando tudo o que teus olhos vêem,
um misto de tristeza numa paisagem grandiosa
Ou um grito de alegria na morte de um ser que queres bem?
Nunca sentiste nostalgia na essência das cousas perdidas
Deparando com um campo devoluto
Semelhante a uma viagem esquecida?
Num circo,nunca se apoderou de ti um amargor sutil
Vendo animais amestrados 
E logo depois te mostrarem 
Seres humanos imitando um réptil?
Nunca reparaste na beleza de uma estrada
Cortando as carnes do solo
Para unir carinhosamente
Todos os homens, de um a outro pólo?
Nunca te empolgaste diante de um avião,
Olhando uma locomotiva, a quilha de um navio,
Ou de qualquer outra invenção?
Nunca sentiste esta força que te envolve desde o brilho do dia
Ao mistério da noite,
Na extensão da tua dor
E na delícia da tua alegria?
Pois então, faz de teus olhos o cume da mais alta montanha
Para que vejas com toda a amplitude
A grandeza infindável da poesia que não percebes

E que é tamanha!
– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Mistério – Adalgisa Nery

Há vozes dentro da noite que clamam por mim,

Há vozes nas fontes que gritam meu nome.

Minha alma distende seus ouvidos

E minha memória desce aos abismos escuros

Procurando quem chama.

Há vozes que correm nos ventos clamando por mim.

Há vozes debaixo das pedras que gemem meu nome

E eu olho para as árvores tranqüilas

E para as montanhas impassíveis

Procurando quem chama.

Há vozes na boca das rosas cantando meu nome

E as ondas batem nas praias

Deixando exaustas um grito por mim

E meus olhos caem na lembrança do paraíso

Para saber quem chama.

Há vozes nos corpos sem vida,

Há vozes no meu caminhar,

Há vozes no sono de meus filhos

E meu pensamento como um relâmpago risca

O limite da minha existência

Na ânsia de saber quem grita.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


A razão de eu me gostar – Adalgisa Nery

Eu gosto da minha forma no mundo
Porque representa uma fagulha,
Porque mostra um instante doce e perverso
Da ideia, do gesto e da realização
De Deus no Universo.
Eu gosto dos erros que pratico
Porque vejo a pureza colocada na minha essência
Desde o Início
Lutar contra todo o mal que em mim existe
E ser tão maior, que sobre a minha miséria
Ela ainda persiste
Eu gosto de espiar
O meu olho direito
Ver o esquerdo chorar,
De sentir a minha garganta se enrolar de dor
Porque em troca de tanta cousa dolorosa
Ele construiu em mim uma cousa gloriosa,
Que é o amor.
– Adalgisa Nery, in: A Mulher Ausente, 1946.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


A rota – Adalgisa Nery

O mundo pulveriza-nos sem revelar

Seus intuitos secretos.

A vida é contemplá-los nos seus gestos mais sutis

E sentir nas águas profundas

O que de cada destino foi escrito

Nos penhascos dos mares agitados.

No vácuo do espírito

Anda a forma sem direção

Por caminhos já pisados

E inseguros são os passos repetidos.

Nem sempre o olhar mais aberto

À procura da estrada de nós mesmos

Torna o espírito mais desperto.

Vivemos nos penhascos dos mares agitados.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


A essência imutável – Adalgisa Nery

Entre a estrela e o átomo

A matéria viva estabelece o traço original.

A fotossíntese realiza a assimilação

Da energia solar do homem,

Mecanismo-alimento da força biológica

Existente no grão de luz que ronda o corpo inanimado

Vindo da semente viajante dos ventos programados.

Cubos-pedra lançam o elétron

De uma órbita a outra dos planetas tranquilos

E voltam à origem do cansaço.

Desencadeia-se o calor que mata,

O mecanismo complica-se,

O elétron muda de órbita

E a sua volta é seguida de reações em cadeia

Para aniquilar o homem caminhante

Das estradas indecisas.

As múltiplas diferenças de forças

Convocam a origem da vida em cada rumo da poeira ardida

Enquanto a procissão do grande mecanismo

Mostra em todos os níveis, em todas as gamas da existência,

A sua ativa regulagem

Que ainda é mistério para o homem aniquilado

Pela surpresa do nada saber

Além das suas carnes esfarrapadas pela infinita agonia.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Abandono – Adalgisa Nery

A exaustão faminta 
Procura elementos ainda vivos no meu ser 
Talvez guardados em escuros vácuos 
Que carrego sem saber. 
Alimenta-se do sopro das imagens 
Desenhadas pela minha imaginação 
Pelo tato dos meus sentimentos, 
Pelo pânico do desconhecido. 
Aparece como febre constante dilatando as minhas carnes 
Descoloridas e sem sabor de vida. 
A exaustão sobe pelos meus pés, 
Cobre os meus gestos incipientes, 
Prende a minha língua, 
Suga o meu cérebro, ninho de aranhas em fogo, 
Pousa no meu cabelo como morcego. 
Exaustão que funga o ar, que saqueia o meu silêncio, 
Último repouso nos meus vácuos devassados. 
– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Cantiga de ninar – Adalgisa Nery

Repousa. Descansa. Virá um dia um vento

Que arrancará a tua balançada alma do teu corpo

E jogará a tua balançada alma do tempo.

Que levará teus braços para as nuvens distantes

E deixará tranqüila tua orelha

À borda das águas cantantes.

Um vento suave como a caricia de uma doce mão

Que se envolverá no brilho dos teus cabelos

Que descerá desde o teu cérebro

Até o fundo do teu amargurado coração.

Cairá sobre ti, como a noite sobre a mata e sobre as flores

Desdobrará as formas dormidas

Deitar-se-á sobre teus sentidos

E estancará tuas dores.

Um vento que levará para a eterna distância

Os dolorosos solavancos de teu espírito

E os pedaços melancólicos de tua infância.

Repousa. Descansa. Aconchega no sono teus pensamentos

Que este vento chegará, não falta muito

Transformará em luz a tua treva,

Dentro de rapidíssimos momentos.

– Adalgisa Nery, in: Mundos Oscilantes, 1962.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery


Canção para dentro – Adalgisa Nery

A canção do corpo é cantada para dentro

E a leveza da alegria se transmuda em peso,

A brisa adere aos amargos pensamentos

Fluindo no sorriso compassivo.

Logo,

Surgindo de células desamadas

Os matizes áureos anoitecem,

Pálpebras levantadas vão caindo

E nesgas apenas vislumbramos,

Geografias em nós morrendo,

Oceanos crescendo, ilhas sumindo,

Rosas nascendo na canção

Que o corpo canta para dentro.

– Adalgisa Nery, in: Erosão, 1973.

Adalgisa Nery

Autor: Adalgisa Nery