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Constelação maior

Tenho um fiel companheiro
que vigia meu lar.
Tantos me dirão: quem é?
Mas não vou nomear.
Ele é bonito
e a minha garota
o recebe em seu leito
Eu mesmo às vezes
abro mão do orgulho
e com ele me deito.
Assim é o amor que ignora
simplórias fronteiras.
O bom-bocado conhece a medida do fel.
Ciúmes tenho mas eu renuncio.
Coisas maiores existem entre os três:
sabor antigo pela primeira vez…

Falha humana

Eu provoco desastres sinistros de amor
Aquelas tragédias que seja como for
Encerram fins de ano
Misturam na boca o pernil e a dor
O vinho e o horror
Um que anda no hall dos desaparecidos
Um outro que nem foi identificado
Ilusões soterradas, carinhos perdidos
Choro não resgatado
E a chuva em diferentes clarões de vermelho
As buscas inúteis pela noite inteira
O grito e a raiva, dois trens
Que se engavetaram em Mangueira

O choque permanente da decepção
Manchou minhas formas, apagou meu contorno
E não tenho seguro pra me proteger
De envelhecer nessa dor de corno
É um deslizamento daquelas barreiras
Que me sustentavam querendo descer
E que desabadas, vão ao ar deformadas
Em jornal de tv
Meu samba é a autópsia de amores passados
O atestado de óbito da vida insana
Teve meu laudo
Perito em paixão constatou:
Falha Humana

Flores de lapela

Você vai dizer que sabia
Que isto ia acontecer,
Que eu bebia em demasia
E maltratava você.
E eu vou dizer que você
Já não era mais aquela,
Um mero enfeite sem vida
Feito flores de lapela.
Tantos dirão tanta coisa
Mas maldade vai sobrar,
As bocas mudando as versões
Feito as toalhas de um bar…
Apenas o armário de espelho
No banheiro
Diz o que é solidão:
Se o amor anda ausente
O armário só guarda
Uma escova de dente.

Recreio das meninas II

Eu fui de bengala, tossindo, com febre, lá no Renascença,
porque em toda a vida o samba foi cura pra minha doença.
Sentei no meu canto, uma voz perguntou: “O que qui vai querer?”
Perdi a cabeça e falei pra menina:
– Eu queria você…

Um riso de aurora acolheu meu ocaso e a pressão subiu.
Peguei meu remédio mas as mãos tremiam e o vidro caiu.
Chutei a caixinha, pedi caipirinha, pernil e café.
Receita infalível pro meu coração é um corpo moreno de mulher.

Eu vou com ela ao Capela, ao Siri e traço moqueca, carré, javali…
Digo sempre, bebendo com o Jorge:
– Foi no Renascença que eu renasci.

Aos que me gozam no bar,
dizendo que eu sou
o Recreio das Meninas,
respondo:
– Andorinhas fazem ninho nas ruínas.

Velhas ruas

Velhas ruas
Se essas pedras falassem
Talvez até confirmassem
O que eu tenho pra dizer

Ruas, pequenas sem glória
Desde a infância na memória
Não mais param de crescer
Velhas ruas
Cansado da boêmia
Entre essas pedras um dia
Quero cair e morrer

Ruas, mudadas de outrora
Confesso chegou a hora
De me render a evidencia
Meu coração lá da vila
De vez em quando vacila
Fora da velha cadência

Ruas mudadas de outrora
Se algumas vezes na aurora
A minha vista escurece
É que nesse tempo mudado
Dentro de um velho sobrado
Quando a cortina estremece

Vê-se a mulher que não esqueço
Correndo as contas de um terço
Por alguém que não merece

Perder um amigo

Perder um amigo,
morrer pelos bares,
pifar em New York,
penar em Pilares…
Perder um amigo:
errar a tacada,
sentir comichão
na perna amputada.
Perder um amigo,
mudar pra bem longe,
levar vida afora
o tombo do bonde.

Perder um amigo
é a última gota
se o cara duvida
que a vida é marota.
Perder um amigo,
perder o sentido,
perder a visão,
as mãos, os ouvidos…

Perder um amigo:
perder o encontro
marcado e marcar-se
com a perda do espelho
nos olhos do amigo
aonde melhor
conheci minha face.

A noite, a maré e o amor (participação: Silvio da Silva Júnior)

Vai maré, vem maré,
E o mar reluz a luz da noite
Que é minha irmã sem lar,
A noite é capitã no mar, no mar,
E tem lições pra dar.
Noite venha me buscar!
Noite venha me ensinar
A lição de amar.
Noite vem e o sonho é sua vela,
E o vento bate nela,
E à medida que vem vindo, a noite se constela,
E é tão bonita, é tão singela, lembra a capela,
Onde nasci, me batizei, me comunguei, noivei…
Noite é minha mãe, é companheira, é minha irmã madrinha,
E vem na praia me buscar num barco de rainha.
Eu puxo a rede, enrolo a rede, puxo e enrolo a linha,
Tá na hora da partida deixo o meu adeus,
Deixo o meu adeus, deixo o meu adeus.
Ai, pra essa praia, pra morena que já me esqueceu,
Pra igrejinha, pro cachorro, pra quem como eu,
Na despedida que é a vida teve que partir,
Eu hoje parto, parto triste, mas preciso ir…
Mil marés eu vi passar,
Mil amores vi morrer,
A lição guardei.
Vai e vê
Que a maré e o amor
Começam quando cessam sem saber.
Sem saber, sem saber…

Valquíria

Valquíria era filha de Maria
Morava na São Miguel
Justo no pé do Borel.
De tanto ouvir falar em montarias
Entre outras mordomias
Cismou de comprar um corcel


Mas já desaqueciam, a economia escandalosa
E o sonho atravessou
Feito osso de penosa
Valquíria que tinha mania de ser bom cabrito

Comprou um jerico na Xavier de Brito
Saiu pela na Muda que nem Dom Quixote, com roupa de adidas
Há dias foi vista a caminho da Penha
Em plena Avenida Brasil
E a pedir mais milagre
O burro empacou e a Valquíria caiu.
Um gozador comentou:
- Já não se cavalga tão bem no país!
Afinal somos meio leitões
Somos chefes de casas civis

Canário da terra

Me dizem que sou demodê,
Saudosista, blazê, retrô...
Me acusam até mesmo de ser
Um malandro cocô, e eu sou
Eu vim da Maia Lacerda
E essa merda faz parte de mim
Bomba de flit, baile no elite, schinit
 Taí minha herança, e dela não abro mão
Canário da terra é meu coração
Sou do Rio de janeiro, brasileiro...

Santo Amaro

Eu ia a pé lá da ladeira Santo Amaro
Até a Rua do Catete
No sobrado onde você residia
E te levava pra um passeio em Paquetá
Onde nasceu num piquenique
O nosso rancho, o Ameno Resedá
Verde, grená e amarelo, nossas cores
Resedá, vocês são flores como flor
Era a Papoula do Japão
Sua rival saiu no Flor do Abacate
De destaque no enredo da Rainha de Sabá

Os lampiões, os vagalumes
Você triste, com ciúmes
Eu charlando, resmungando
Que melhor era acabar
Pobre farsante de teatro ambulante
Meu amor de estudante
Não soube representar
E o casamento aconteceu
Vieram filhos, muitos netos
Muitas dores, muitos tetos
Mas o amor a tudo isso ultrapassou
Hoje, sozinho, eu voltei feito andorinha
À Pedra da Moreninha, onde tudo começou

Olhando o mar, pensei na vida ao seu lado
Como um choro do Callado
Um piano em Nazareth
Saudade grande o dia inteiro
Mas com jeito de alegria
Do pandeiro do Gilberto no Jacob
Pra cada dó, um sol maior, um lá sereno
A harmonia do Ameno, o amor do Resedá
Eu, funcionário aposentado
Coração não conformado
Antigo e novo, feito lua em Paquetá

Passou a vida com os ranchos desfilando
União da Aliança caprichosa em estrelas, desenganos
Desci por ela como desço ainda hoje
a ladeira Santo Amaro até o sobrado
Que o metrô matou
Bom era ir batendo perna
Tomar chope na Taberna
E outra história, é uma glória
Ser da Glória, o que é que há?
O rosto dela vela o Rio de Janeiro
Como a virgem do Outeiro
Guarda o Ameno Resedá

Anel de ouro

Desde menino sempre sonhei
Com a ciranda em que o amor nos faz rodar:
Fragilidade de porcelana…
Testemunhei o anel de vidro se quebrar.
A duração de um verso,
Doce murmúrio
E depois dizer pra sempre adeus.
Quando eu te conheci acalentei
Sonhos tão loucos que pudessem nos salvar
Do fim e foi assim
Que em tal paixão só sosseguei
Com o anel de ouro que eu te dei.

Vivi feliz sem suspeitar
Que a ciranda em que o amor nos faz rodar
Guarda o martírio das coisas lindas,
Faz até mesmo um diamante se quebrar.
Uma palavra amarga,
Um desencanto
E depois dizer pra sempre adeus.
Quando eu te vi partir acalentei
Triste delírio em que o amor fosse evitar
O fim, mas, ai de mim,
Dessa paixão só resgatei
No prego o anel de ouro que eu te dei

Mastruço e catuaba

Veio a comadre bater no portão lá de casa
Pra contar que o meu compadre, nem começou já acaba
Esse cara precisa de um chá
De mastruço e catuaba
Disse que faz uns seis meses que o fuque fuque anda ruço
Esse cara precisa de um chá
De catuaba e mastruço

O miguel chegou da espanha
Pra abrir um restaurante, boate e boteco
Era louco por vedete
Mas na hora “h” não armava o boneco
Suava perdia os sentidos
Y voltaba a si sin saber donde estaba
Taí mais um caso pra chá
De mastruço e catuaba

Um moço tão delicado
Que longe de mim comenta que era paca
Voltou da lua-de-mel
Babando a gravata, esticado na maca
Disse que se constrangera
Que a noiva era mais cabeludo que urso
Esse nem com muito chá
De catuaba e mastruço

Entrevistaram o cacique
Famoso guerreiro tatutacuntara
Índio que além de peitudo
Também possuía vergonha na cara
Tem bem mais de trinta filhos
É o tacape maior que se viu lá na taba
Graças a tupã e ao chá
De mastruço e catuaba

Dry

Você foi embora dizendo que eu era até gente boa
mulher não tolera essas frases que homem a toa costuma dizer
lembro as toalhas molhadas no chão
fios de barba na pia e rezo pra virgem Maria pra que filha minha não pegue homem assim
eu me sentia um cinzeiro repleto das pontas que você deixava
e que ironia essa imagem: a guimba apagando é quando mais queimava.
você saiu dando tchau
brincou que ao meu lado era o tal
fiquei pendurada no adeus como um velho avental

Foi amor de trapaça e de tara, de beijo na nuca, de tapa na cara
andei meio louca sem ser maltratada
parei com esse vicio, mas quase morri
hoje somente se bebo o dia seguinte pode me afetar
é que a secura me lembra teu jeito de amar

Valsa do Maracanã

Quando eu ficar assim
morrendo após o porre
Maracanã, meu rio,
ai corre e me socorre
Injeta em minhas veias
teu soro poluído
de pilha e folha morta,
de aborto criminoso
de caco de garrafa
de prego enferrujado
dos versos do poeta
pneu de bicicleta
Ai, rio do meu Rio,
Ai, lixo da cidade
de lâmpada queimada
de carretel de linha
chapinha premiada
e lata de sardinha
o castigo e o perdão
o modess e a camisinha
o castigo e o perdão
o modess e a camisinha
Ai, só dói quando eu rio,
Maracanã, meu rio
Maracanã, meu rio
Ai, só dói quando eu rio

Retrato cantado

Quem me vê sentado
atrás dessa mesa de escriturário,
não vê o tarado, o louco, o sanguinário,
o bárbaro sem véu,
o estripador cruel.
Não me vê no convés
de um veleiro de três mastros
me guiando pelos astros
a caminho de Bornéu.
Não sabem que eu roubo
meninos na praça quando a tarde cai
e que os vespertinos já me apelidaram
de monstro assassino
do Parque Shangai…
Mas eles não sabem
que eu sou gigolô de beira de cais
que eu sou o autor do crime da mala
que eu larguei o trapézio por beber demais…
E nem imaginam
as atrocidades que vou cometer
Não desconfiam
que a causa de tudo
é não conseguir me esquecer de você
Eu não consegui
me esquecer de você..

Mãos de aventureiro

Pensei que pudesse largar o batuque e a Brahma
Chegar logo em casa, vestir o pijama
Ir cedo pra cama quando acordar
Sorrindo fazer teu café e levar de surpresa
Regar o jardim, voltar pra empresa
Pra teres um dia orgulho de mim, ah, meu Deus

Mas a tarde começa a cair e eu perco o sossego
Sentindo correr no meu sangue de negro
O chamado do samba e do botequim

Quando volto finges dormir
E manténs no semblante completa inocência
Mas minha vista apesar de turvada
Vai além da aparência

Minhas mãos de rude aventureiro
Vão em busca do seu travesseiro
Mas a fronha molhada me diz que choraste outra ausência
E a fronha molhada me diz que choraste outra ausência

Entre o torresmo e a moela

Envelheci, mas continuo em exposição
A ex-mulher me chama de Sardinha de Balcão
Eu digo sempre que melhor que apodrecer ao lado dela
É ir mofando entre o torresmo e a moela

Porque lá em casa a barra era violenta
Eu padecia entre a mostarda e a pimenta
Agora vivo entre o cavaco e o violão
Lá em casa era entre o cutelo e o facão
Quem acordava entre a meleca e a remela
Prefere a vida entre o torresmo e a moela

De barco entre a tempestade e a piração do leme
Levava beiço do Ecad e bico da Capemi
Falavam mal de mim a sogra e a vizinha
Ai, eu penava entre o modess e a calcinha
Quem se amarrou entre cabresto, rédea e sela
Quer descansar entre o torresmo e a moela

Entrei para a política e votei no Leonel
Acabei entre o Agnaldo e a mãe, via Embratel
Pedi desculpa a um general que me deu na costela
O vice disse outra tolice, não lhe dei mais trela:
Entre o sambódromo e o bicheiro, rei da passarela
Quero é sambar entre o torresmo e a moela

Paquetá, dezembro de 56

Paquetá, dezembro de 56

Vocês não lembram
Meninos eu vi uma cabocla chamada Eucy
Ai! nem no Taiti

Boca machucada, olhar coquete, mãos de fada
Que apaixonaram o Roque da charrete numa serenata enluarada

Mas o amor de dois passou a ser de três
Um tal Nandinho que falava inglês disse “I love you”, Eucy achou demais
O Roque enlouqueceu
E nadou pra Brocóio quando a lua se escondeu
Só no dia de São Roque, o Roque apareceu

Diz a lenda
O corpo estava conservado
O céu todo estrelado na noite de Jasmins
Junto à beira mar se despediu do morto, à escolta de mil botos, sereias e marlins
Uma vela azul ardeu no oratório, no altar do preventório
Onde Eucy orou e se matou

Ah, triste destino desses dois amantes
Perderam a vida toda por instantes que o prazer jamais justificou

Ah, o que eu me lembro pode não ter sido tão fielmente o fato acontecido
Essa é a sina que assassina e salva qualquer narrador

Pois talvez Eucy não fosse linda nem tão pura
E o Roque fosse um chato, um mala, um indiscreto, e o tal Nandinho até analfabeto

Mas não tem importância, a vida é uma festa
Eu quis apenas cantar seresta
Eu fumei no preto, e bebi uns tragos do escocês

Vocês não precisam acreditar que um dia aconteceu tanto em Paquetá, dezembro de 56

Dois bombons e uma rosa

Faço votos de feliz casamento,
parabéns pra você,
prevaleceu seu bom-senso.
Reconheço que era chato
ser a outra eternamente
com encontros marcados
por coisas do tipo ?eu subo na frente?.
Finalmente teu garoto
vai ter um pai de primeira,
você mais segurança
e um pingüim na geladeira.
Na cabeceira um relógio,
a hora mais luminosa,
churrascaria aos domingos:
dois bombons e uma rosa.
Apenas quero fazer
a necessária ressalva:
jamais comente o passado,
lembre o conselho de Dalva.
Não há xampu, não há creme
que apague ou que desmarque
da tua pele o meu beijo
fedendo a conhaque

O Sandoval tá mudado

NO PRONTO SOCORRO DO ANDARAÍ
TU ENTRA CAJÁ E SAI CAQUI
NA URGÊNCIA DO MIGUEL COUTO
UM TUBARÃO VIROU BOTO

MAIS O PIOR SUCEDEU
A UM TIO MEU LÁ NO ROCHA FARIA AI AI AI AI
ENTROU SANDOVAL SAIU ANA MARIA
A UM TIO MEU LÁ NO ROCHA FARIA AI AI AI AI
ENTROU SANDOVAL SAIU ANA MARIA

COUVE NÃO VIRA REPOLHO
TÔ COM OLHO NO PÉ
O QUE O PÉ TEM QUE DÁ
MESMO REGANDO COM MOLHO
DO VANDO ESSE OLHO NÃO VOU ME ENGANAR

O SANDOVAL SE INTROMETE
E COMPROMETE A MUDA QUE VOU ME MUDAR
SANDOVA DISFARÇA BANCA O SONGA MONGA
MAS TRUFA A CENOURA SENHORA QUE NEM PERNA LONGA
AI AI AI AI
ENTROU SANDOVAL SAIU ANA MARIA

NAS HORTALIÇAS QUE EU PAGO
SÓ VEJO GRILINHO UMA OU OUTRA TOUCEIRA
O SANDOVAL QUER QUIABO
EXIGE PEPINO SECA PIMENTEIRA
A PRÓPRIA MUDA ADMITE
QUE É CIRCULAR E NÃO TEM MEDO DISSO
MAS HÁ DIFERENÇA ENTRE UM LOMBO AOS DOMINGOS
E ALGUÉM QUE SÓ PENSA EM SENTAR NO CHOURIÇO
AI AI AI AI

O bonde

Morre no meio da praça
Sem sonho e sem graça
Sem ter mais pra onde ou porque
Já que esse bonde não passa
Ninguém mais o espera
Quem dera eu pudesse entender
Vira brinquedo sem dono
Que o próprio abandono
Correndo no tempo desfaz
Fora de linha e de moda
Não passa
Não roda
Não leva mais
Quem não quiser chorar
Finja que vai partir
Tome um lugar no bonde
Não peça que ande
Nem diga por onde seguir
Lembre que só depois
Quando chegar ao fim
Mesmo sem brilho e sem glória
Haverá sua história contada assim
Passei seu passo tranquilo e cansado
De quem já sabe de cor seu destino
Para
Suspira e prossegue
Vai percorrendo
Rota de sua rotina de sempre chegando e partindo
Por um caminho traçado no chão
Cantando
Contente
Tin dim dim tin dim dim
Chega ao ponto final
Recompanheiro e confessa que o bonde sem pressa chegava depressa demais
Quem não achava o dinheiro saltava ligeiro
Corria e pegava o de trás
Guardo no meu pensamento transformo em cantiga
Momentos que foram tão meus
E hoje quem passa nem liga
Nem pensa em dizer adeus
E hoje quem passa nem liga
Nem pensa em dizer
Adeus

Lupicínica

  • Aí, Nei, essa vai pra Valmir Gato Manso

Amei
uma enfermeira do Salgado Filho,
paixão passageira, sem charme nem brilho,
roteiro batido, romance na tarde.

E aí, numa seresta na Dois de Dezembro,
me perguntaram por ela: “-Nem lembro…”,
eu respondi com um sorriso covarde.

Ouvi – que bofetada! – “Morreu duas vezes.
Uma aqui e agora, a outra há seis meses”.
Balbuciei: “-Morrida ou matada?”

“-Depende do seu conceito de assassinato.
Um pobre amor não é amor barato.
Quem fala de tudo não sabe de nada.”

Na rua do Tijolo, bloco 5, aquele de esquina,
morou uma enfermeira com a chama vital de Ana Karenina.

Dirá um dodói que Tolstói era chuva demais pra tão pouca planta.
Ô trouxa, heroínas sem par podem brotar na Rússia ou lá em Água Santa…

Aquela mulher que dosava o soro nas veias dos agonizantes
não teve sequer um calmante pra dor sem remédio que aflige os amantes.

Por mais que a literatura celebre figuras em vã fantasia
ninguém foi mais nobre que a Pobre da Enfermaria.

Vida noturna

Acendo um cigarro molhado de chuva até os ossos

E alguém me pede fogo – é um dos nossos

Eu sigo na chuva de mão no bolso e sorrio

Eu estou de bem comigo e isto é difícil
Eu tenho no bolso uma carta
Uma estúpida esponja de pó-de-arroz
E um retrato meu e dela

Que vale muito mais do que nós dois
Eu disse ao garçom que quero que ela morra
Olho as luas gêmeas dos faróis
E assobio, somos todos sós

Mas hoje eu estou de bem comigo
E isso é difícil
Ah, vida noturna
Eu sou a borboleta mais vadia
Na doce flor da tua hipocrisia

Me dá a penúltima

Eu gosto quando alvorece
Porque parece que está anoitecendo
E gost quando anoitece,que só vendo
Porque penso que alvorece
E então parece que eu pude
Mais uma vez,outra noite,
Reviver a juventude.

Todo boêmio é feliz
Porque quanto mais triste,mais se ilude.
Esse é o segredo de quem,como eu,vive na boemia:

Colocar no mesmo barco,realidade e poesia
Rindo da própria agonia,
Vivendo em paz ou sem paz
Pra mim tanto faz,
se é noite ou se é dia.

O Bêbado e a Equilibrista

Caía
A tarde feito um viaduto
E um bêbado trajando luto
Me lembrou Carlitos

A lua
Tal qual a dona de um bordel
Pedia a cada estrela fria
Um brilho de aluguel

E nuvens
Lá no mata-borrão do céu
Chupavam manchas torturadas
Que sufoco!

Louco
O bêbado com chapéu-coco
Fazia irreverências mil
Pra noite do Brasil
Meu Brasil

Que sonha
Com a volta do irmão do henfil
Com tanta gente que partiu
Num rabo de foguete

Chora
A nossa pátria, mãe gentil
Choram Marias e Clarisses
No solo do Brasil

Mas sei
Que uma dor assim pungente
Não há de ser inutilmente:
A esperança
Dança, na corda bamba de sombrinha
E em cada passo dessa linha
Pode se machucar

Azar
A esperança equilibrista
Sabe que o show de todo artista
Tem que continuar

Querelas do Brasil

O Brazil não conhece o Brasil
O Brasil nunca foi ao Brazil
Tapir, jabuti
Iliana, alamanda, alialaúde
Piau, ururau, akiataúde
Piá, carioca, porecramecrã
Jobimakarore Jobim-açu
Uô-uô-uô-uô

Pererê, câmara, tororó, olerê
Piriri, ratatá, karatê, olará!

O Brazil não merece o Brasil
O Brazil tá matando o Brasil
Jerebasaci
Caandrades cunhãs, ariranharanha
Sertões, Guimarães, bachianaságuas
Imarionaíma, arirariboia
Na aura das mãos de Jobim-açu
Uô-uô-uô-uô

Jereerê, sarará, cururu, olerê
Blá-blá-blá, bafafá, sururu, olará

Do Brasil, S.O.S. ao Brazil

Tinhorão, urutu, sucuri olerê
Ujobim, sabiá, bem-te-vi olará
Cabuçu, Cordovil, Cachambi olerê
Madureira, Olaria ibangu olará
Cascadura, Águasanta, Acari olerê
Ipanema inovaiguaçu olará

Araguaia e tucuruí
Cantagalo, ABC, japeri
Cabo frio xingú sabará
Florianópolis piabetá
Araceli no espirito santo
E o aézio em jacarépaguá
Os inamps o jari a central
Instituto medico legal

Do Brasil, S.O.S. ao Brazil
Do Brasil, S.O.S. ao Brasil

Resposta Ao Tempo

Batidas na porta da frente
É o tempo
Eu bebo um pouquinho pra ter
Argumento
Mas fico sem jeito, calado
Ele ri
Ele zomba de quanto eu chorei
Porque sabe passar
E eu não sei

Num dia azul de verão sinto vento
Há folhas no meu coração é o tempo
Recordo um amor que eu perdi
Ele ri
Diz que somos iguais
Se eu notei
Pois não sabe ficar
E eu também não sei

E gira em volta de mim
Sussurra que apaga os caminhos
Que amores terminam no escuro
Sozinhos

Respondo que ele aprisiona
Eu liberto
Que ele adormece as paixões
E eu desperto
E o tempo se rói com inveja
De mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver

No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer