Skip to main content

Promessas de um idiota às seis da manhã

Momento que aponta e revela
a cor da poesia
Ainda resta um pedaço da noite

Teimosa empurrando a barra do dia
Já se ouve os primeiros pardais
afinando a orquestra

É o início do dia de dor e de festa
Retrato inverso da Ave Maria
E eu prometo aderir ao sistema

Olhar a vitrine, o cartaz do cinema
Trocar minhas rugas de preocupações
pelo céu de Ipanema

Prometo viver a intenção do passado
Manter este corpo faceiro ao meu lado
O ar de menina sapeca e levada
do cabelo molhado

Falta pouco pra seis horas da manhã
É gente correndo atrás do destino e da compensação
Daqui a pouco são seis horas da manhã

Cada um no seu canto
vivendo do canto,
do acordo e do não

E eu prometo aviar a receita
do bolo da sorte, da boa colheita

Matar a angústia dessa juventude
Tão insatisfeita
Prometo trilhar o caminho mais certo

Cidadão comportado
ordeiro e correto
Dividir minha cama com a mulher amada
no momento deserto
Falta pouco…

Reciclagem

Saí de casa muito cedo
Os trapos na minha sacola
Camisa bordada no bolso
Na mão direita a viola
Principiava o mês de junho
O céu cinzento anunciava o inverno
O peito vazio de tudo
E a mala cheia de amor materno

Meu companheiro
Que sai de casa e na vida cai
Com as cacetadas desses anos todos
Eu fiquei mais velho que meu velho pai

Os jardins da casa grande
As trancas ficando pra trás
Hoje, depois de algum tempo
Eu sei que ficou muito mais
Ficou um sentido de vida
Uma filosofia, uma razão de ser
Que a idade impediu de ser vista
E que hoje é a própria razão de viver

Meu companheiro
Que sai de casa e na vida cai
Com as cacetadas desses anos todos
Eu fiquei mais velho que meu velho pai

A moda na cidade é grande
O medo que é grande também
A corrida do cheque encoberto
O saldo não teve e não tem
Os valores trazidos da terra
Enfrentando as cancelas do “pode-não-pode”
A força falsa de um cartão de crédito
Ao invés de um fio de bigode

Meu companheiro
Que sai de casa e na vida cai
Com as cacetadas desses anos todos
Eu fiquei mais velho que meu velho pai

Cidadão

Tá vendo aquele edifício moço?
Ajudei a levantar
Foi um tempo de aflição
Eram quatro condução
Duas pra ir, duas pra voltar
Hoje depois dele pronto
Olho pra cima e fico tonto
Mas me chega um cidadão
E me diz desconfiado, tu tá aí admirado
Ou tá querendo roubar?
Meu domingo tá perdido
Vou pra casa entristecido
Dá vontade de beber
E pra aumentar o meu tédio
Eu nem posso olhar pro prédio
Que eu ajudei a fazer

Tá vendo aquele colégio moço?
Eu também trabalhei lá
Lá eu quase me arrebento
Pus a massa fiz cimento
Ajudei a rebocar
Minha filha inocente
Vem pra mim toda contente
Pai vou me matricular
Mas me diz um cidadão
Criança de pé no chão
Aqui não pode estudar
Esta dor doeu mais forte
Por que que eu deixei o norte
Eu me pus a me dizer
Lá a seca castigava mas o pouco que eu plantava
Tinha direito a comer

Tá vendo aquela igreja moço?
Onde o padre diz amém
Pus o sino e o badalo
Enchi minha mão de calo
Lá eu trabalhei também
Lá sim valeu a pena
Tem quermesse, tem novena
E o padre me deixa entrar
Foi lá que cristo me disse
Rapaz deixe de tolice
Não se deixe amedrontar

Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio fiz a serra
Não deixei nada faltar
Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar

Fui eu quem criou a terra
Enchi o rio fiz a serra
Não deixei nada faltar

Hoje o homem criou asas
E na maioria das casas
Eu também não posso entrar