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Vitória da ilusão

Carnaval
Relicário de uma tradição
Imortal vitória da ilusão
Carnaval, coração…
Bordadeira e carpinteiro
Armam outro Rio de Janeiro
Escultor, artesão
Carnaval passional:
Velas de serpentina
A alma de isopor e purpurina…
Carnaval, missa campal do povo brasileiro
Onde a hóstia sagrada é o pandeiro
Carnaval, celestial império do trambique
Onde o crente idolatra o repique
Rio que passa e que não passou
Chama devassa purificou
O meu sentimento na contradição de um ritual
Carnaval anormal:
O menino é menina
E o doutor juiz é a bailarina…
O carnavalesco é um deus maldito
E isso é que é bonito: recriar a criação
Pamplona, Julinho, Joãozinho Trinta dão a pinta
Que nada se acaba quando é feito por paixão
Arlindo Rodrigues, Fernando Pinto, isso é lindo!
– das cinzas à Ressurreição!

Bença, Ná Buruquê

Com tanta folha aqui pra varrer
Ai, Nanã-Buruquê
Ifá me ajude com o opelê
Ai, Nanã-Buruquê
Oxumaré e Obaluaê
Bença Nã-Buruquê
Vou mascarada pra Guedele
Com Nanã-Buruquê

A chuvarada verga
A espinha da favela
Nanã Santana varre
Eu sou a filha dela
O temporal passou
Restauram lama e lodo:
Com isso é que Nanã
Recria o mundo todo
Mel, inhame e dendê
Salubá-Buruquê!
Ontem, hoje e amanhã
Salubá-Shapanã!

Mico preto

Eu nunca dei um jeitinho
Vim devagarinho, penando
Tentando acertar
Neguinho não me deu nada
A não ser porrada, sermão, passa fora
E eu lá
Tem parasita na ativa exportando divisa 
E eu suando a camisa
Por honra da firma
A vida é assim:
Até minha gata dá pra todo mundo
Só não dá pra mim
Se um bacana me chuta
Eu peço desculpas e luto pra não complicar
Se me chamar de bagaço, agradeço, obrigado
Um abraço, isso aí! Até já!
Não tenho tempo pra sarro, o sapato furou
Acabou o cigarro, meu time perdeu
Guincharam meu carro, pisaram o meu calo
E até a comida o cachorro comeu

Mas sou brasileiro
Adoro esse coreto
É agora ou nunca
Já não tem talvez
Tão me dando gelo
Tirei o Mico Preto
Mas vem aí a minha vez!

Meu tempero é sal

Sou macaco velho
Manjo de cumbuca
Eis o meu tempero
Como mestre cuca:

Pouco açafrão
Pimenta um anda
Nem estragão
Nem noz-moscada
Meu tempero é sal!

Dendê, “tantim”
Sálvia, a lembrança
Do alecrim, só a “nuança”:
Meu tempero é sal!

Páprica penso e não ponho
Gengibre eu tenho e não boto
O louro eu tiro na hora agá
A salsa ia mas sai
A erva-doce acabou
O cravo eu cismo e não vai
– Abuso do que não vou por!

Filho de Núbia e Nilo

Quando o negro se requebra
É a água na pedra que rolou por aí
Vem baiana e baticum
É a zarabatana e o dardo em só um
Quando bate palma
O suor da alma
Transparece na cor
Com malícia e rapa
É que o negro escapa
Das lições do feitor

Quando um negro entra na dança
O seu braço é uma lança
De guerreiro no ar
Na cabeça mato e rocha
As fogueiras e as tochas
Iluminam o olhar
Meus pais Núbia e Nilo
Ensinaram os brilhos
Pra enfeitar o rancor
Com sorriso e farra
É que o negro escarra
Nas feições do feitor

Negro ginga, espanta no pé
A mendiga tsé-tsé
Xinga que essa língua é de fé
Ginga e figa só de guiné

Pra que pedir perdão?

Se é pra recordar dessa maneira,
sempre causando desprazer,
jogando fora a vida em mais uma bebedeira,
ó, sinceramente, é preferível me esquecer

Eu te prometi mundos e fundos
mas não queria te magoar
Eu não resisto aos botequins mais vagabundos
mas não pretendia te envergonhar
marquei bobeira…

Vi muitas vezes o destino
ir na direção errada
e a bondade virar completo desatino
a carícia se transformando em bofetada

Ah, eu sou rolimã numa ladeira
não tenho o vício da ilusão:
hoje, eu vejo as coisas como são
e estrela é só um incêndio na solidão
Se eu feri teu sonho em pleno vôo
pra que pedir perdão se eu não me perdôo?

Anjo da velha guarda

O terno branco parece prata
E a fita em meu peito diz que eu sou
Daqueles que vão pra Maracangalha
Rever Anália, eu vou

No vento que leva o chapéu de palha
Também sou de fibra e pau-Brasil
O samba é tudo que eu sei
E Momo é o único rei que amei

Sou a sétima corda e passo devagarinho
Com Rodouro no coração
Meu nome em letras de ouro
É parte do tesouro de qualquer agremiação

De cuíca eu manjo
Também vou de banjo
Fiz das avenidas meu salão

Fidalguia esbanjo
E danço com meu anjo
Eu sou da velha guarda, meu irmão!

Rainha negra

A idade da sereia
O baticum de pé no chão
Chuá de cachoeira…
O mito, o rito ritmam a respiração
Tantan e atabaque
A gargalha do ganzá
O canto do trabalho
A dança, a ânsia sagrada de rememorar

O escuro do negreiro
O açoite pardo do feitor
E um clarão enganador:
A liberdade sonhada ainda não chegou

Saúdo os deuses negros
Da serra-mar céu de quelé
Pro povo brasileiro
Rainha negra da voz, mãe de todos nós

Flores em vida

Ele é um samba de quadra da Mangueira
Que Deus letrou
Dá aula sobre a cidade
E nessa universidade
É o reitor
Como dizia outro Nelson
Despedida
Não dá nenhum prazer
Pra parar com essa mania de sofrer
Trouxe aqui flores em vida
Pra você
Se a paixão do momento engana que é bonita
O Nelson Sargento diz que acredita
Essa é a grandeza que o samba nos legou:
Em cada tristeza erguer nosso copo ao humor
Se o riso é mais do que cansaço
Mangueira cabe em nosso abraço
E toda a dor deste mundo enfeita a nossa fantasia…
Sargento apenas no apelido, guerreiro negro dos Palmares
Nelson é o Mestre Sala dos Mares
Singrando as águas da Baía

Recreio das meninas II

Eu fui de bengala, tossindo, com febre, lá no Renascença,
porque em toda a vida o samba foi cura pra minha doença.
Sentei no meu canto, uma voz perguntou: “O que qui vai querer?”
Perdi a cabeça e falei pra menina:
– Eu queria você…

Um riso de aurora acolheu meu ocaso e a pressão subiu.
Peguei meu remédio mas as mãos tremiam e o vidro caiu.
Chutei a caixinha, pedi caipirinha, pernil e café.
Receita infalível pro meu coração é um corpo moreno de mulher.

Eu vou com ela ao Capela, ao Siri e traço moqueca, carré, javali…
Digo sempre, bebendo com o Jorge:
– Foi no Renascença que eu renasci.

Aos que me gozam no bar,
dizendo que eu sou
o Recreio das Meninas,
respondo:
– Andorinhas fazem ninho nas ruínas.