Deixa a cidade,
Formosa morena,
Linda pequena,
E volta ao sertão.
Beber a água da fonte que canta
Que se levanta
Do meio do chão
Se tu nasceste
Cabocla cheirosa,
Cheirando a rosa
Do seio da terra,
Volta pra vida serena da roça
Daquela palhoça
Do alto da serra.
E a fonte a cantar:
Chuá, chuá.
E as água a correr:
Chuê, chuê.
Parece que alguém
Cheio de mágoa
Deixasse quem há
De dizer da saudade
No meio das águas
Rolando também.
A Lua branca
De luz prateada
Faz a jornada
No alto dos céus,
Como se fosse
Uma sombra altaneira
Da cachoeira
Fazendo escarcéu.
Quando essa Lua
Está na altura distante,
Lifa ofegante,
No Poente cair,
Dá-me essa trova
Que o pinho descerra
Que eu volto pra serra,
Que eu quero partir.
E a fonte a cantar…
Letra Composta por:
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Álbum:
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Estilo Musical:
“Chuá, Chuá” foi composta em 1920 pelo maestro Pedro de Sá Pereira, com letra do poeta Ary Machado Pavão, ambos gaúchos. Foi lançada em 1926, na voz de Fernando Albuquerque, e desde então se firmou como uma das canções mais populares da nossa história.
Apesar de centenária, “Chuá, Chuá” segue contemporânea, em muitos aspectos. Há quem diga que é a canção mais antiga da música popular brasileira “ainda em atividade”, no sentido de que segue sendo cantada por violeiros de todas as gerações, urbanos e rurais, amadores e profissionais.
Bethânia gravou, Martinho gravou, Rosinha de Valença gravou, e muitos outros (muitos, mesmo!) antes deles.
Chitãozinho e Chororó, hoje decanos da música sertaneja, também gravaram, e bem. O curioso, no entanto, é que não podemos chamar “Chuá, Chuá” de música sertaneja, em sentido próprio. O contexto histórico, refletido em sua letra, explica o porquê.
Se você chegou até aqui, é porque gosta de ler, então, antes de passar à análise, deixo uma recomendação de leitura: “A Rosa no Peito da Terra: Natureza e Sentimento Nacional na Canção Chuá, Chuá”, artigo de Márcia Ramos de Oliveira e Kamylla Silva publicado na revista “Fazendo Gênero, n. 9: Diásporas, Diversidades, Deslocamentos”, de agosto de 2010, disponível na internet (basta buscar). A propósito, há dois errinhos na letra disponibilizada pelo blog: o correto é “…peito da terra…”, não “…seio da terra…”. E é “…linda, ofegante…”, não “…lifa, ofegante…”
Mas vamos ao contexto, os agitados anos 1920. Agitados na política, na sociedade e também nas artes. A urbanização se acelerava no Brasil e, com ela, o “corre” da vida moderna, com suas pressões por grana e acolhimento, que sempre espremem o lado mais fraco do tecido social.
Entre os “espremidos”, estavam os trabalhadores rurais e seus filhos, que sem condições de se manter em um ambiente rural marcado desde sempre pela propriedade latifundiária partiam para a cidade, atrás da promessa central da modernidade: o progresso infinito.
“Chuá-Chuá” é uma música urbana, que na verdade diz mais sobre a vida (vida?) na cidade do que das “coisas da roça”, que na canção são explicitamente idealizadas. É uma música sobre o desamparo do brasileiro periférico, que vive na cidade, mas sonha com o retorno a um passado rural idílico, simbolizado por uma musa cabocla, que poderia ser qualquer brasileira, no mesmo contexto social.
De certa forma, a canção conta a história do Brasil da década de 2020, tanto quanto contava em 1920. O trovador clama, logo de cara: “deixa a cidade, formosa morena”, “volta ao sertão”. O sertão era (em certos rincões, ainda é) lugar sem lei. De violência armada, exploração de mão de obra, violência doméstica, fome e miséria, mas em meio à máquina de moer gente do capitalismo urbano o trovador só consegue se lembrar da “água da fonte que canta”, do “luar na altura distante” e, claro, da casa própria — sonho que representa o brasileiro médio mais que samba e futebol –, idealizada como uma “palhoça no alto da serra”. Parnasiano, romântico e, como sói, irreal.
O trovador, portanto, não vive a realidade do campo, mas a da cidade. “Chuá, Chuá” é uma (lindíssima) música urbana, que revela o “mal-estar da modernidade” e idealiza o rural como ponto de fuga. Há muitas outras, na história da MPB: Casinha Branca, Casa no Campo, Saudade da Bahia, Eu Vim da Bahia, Luar do Sertão (sim, é o luar “cá” da cidade que não tem aquela saudade do luar “lá” do sertão), etc.
A tristeza, contudo, vem de dentro. Por isso, mesmo deitado à relva de seu paraíso idealizado, o chuá-chuá da fonte cristalina parece, aos ouvidos do melancólico trovador, o choro de alguém “cheio de mágoas”, que deixou “quem há de dizer a saudade no meio das águas, rolando também”. Quem vive o abandono, como vive a maioria da população urbana brasileira, o vê em toda parte.
Oliveira e Silva, no artigo mencionado há pouco, lembram também que parte o sucesso de “Chuá, Chuá” se deve à deliberada escolha do “sertanejo” como “brasileiro-raiz”, em detrimento de outros grupos vulnerabilizados, especialmente os descendentes de escravos, que nos anos 1920 eram vergonhosamente “escondidos” pelos pensadores do Brasil
Nada disso nos impede de dizer: que canção linda! A melodia simples e elegante emociona nas pontes que ligam os versos iniciais das duas estrofes ao famosíssimo refrão, cantado a plenos pulmões por qualquer um ao primeiro contato com a música.
Me refiro às “pontes” entre “cheirando a rosa do peito da terra” e “volta para a vida serena da roça”, na primeira estrofe; e entre “linda, ofegante, no poente, a cair” e “dá-me esse trova que o pinho descerra”, na segunda. Uma preparação clássica na escala de um acorde maior (no caso, G, G7, C), que convida o ouvinte a encher os pulmões e liberar a emoção antes do refrão com ares de mantra.
Mas, enfim, não sou músico e este blog é sobre letras, então o que fica é o seguinte: “Chuá, Chuá” permaneceu no tempo por representar as angústias e anseios do grande povo brasileiro em uma melodia simples, porém belíssima.
Cláudio Lins de Vasconcelos (julho de 2023)
Uma breve errata: escrevi “Chororó” O correto é “Xororó”, com “x”.